Pesquisa do oncologista Paulo Henrique Aires de Freitas (foto), do Mestrado Profissional do AC Camargo Cancer Center, mostra que 8 indicações revogadas pela Food and Drug Administration (FDA) depois de obter aprovação acelerada continuam vigentes no Brasil para o tratamento do câncer. “Mesmo depois de revogadas pelo FDA, essas indicações constam em bula e continuam a valer no Brasil – sem evidências de benefício clínico”, alerta.
Em condições de saúde com necessidades médicas não atendidas, o processo de aprovação acelerada permite que os medicamentos cheguem aos pacientes mais rápido do que a via de aprovação tradicional, com base em evidências preliminares de eficácia demonstradas por desfechos substitutos. No entanto, algumas dessas inovações foram retiradas do mercado norte-americano porque não conseguiram demonstrar benefício clínico em ensaios confirmatórios.
E no Brasil?
Aqui, surpreendentemente, várias indicações revogadas pelo FDA para o tratamento do câncer continuam autorizadas pela Anvisa, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (veja quadro). “O uso de medicamentos com eficácia ou segurança questionáveis pode acarretar sérias consequências para os pacientes e para os sistemas de saúde”, destaca o pesquisador.
Entre as decisões revistas pelo FDA nos últimos 5 anos está a aprovação de atezolizumabe (Tecentriq®, da Roche) como monoterapia para o tratamento de pacientes adultos com carcinoma urotelial localmente avançado ou metastático após quimioterapia à base de platina ou inelegíveis à cisplatina.
A aprovação acelerada foi concedida pelo FDA em maio de 2016, com base nos resultados do estudo de fase 2 IMvigor210 (NCT02108652). Em novembro de 2022, diante dos resultados negativos do ensaio de fase III IMvigor130 (NCT02807636), a fabricante Roche retirou a indicação do mercado norte-americano. No ensaio confirmatório, a adição de atezolizumabe à quimioterapia não atingiu o desfecho primário de sobrevida global (SG) na comparação com quimioterapia.
No Brasil, a indicação de atezolizumabe no carcinoma urotelial permanece em bula. O anti PD-L1 da Roche também perdeu indicação nos EUA para o tratamento do câncer de mama triplo negativo (TNBC nas iniciais em inglês). A aprovação inicial foi baseada no ensaio IMpassion130 (NCT02425891), que randomizou 902 pacientes com TNBC avançado sem tratamento prévio para receber nab-paclitaxel mais atezolizumabe ou placebo, e sugeriu benefícios de sobrevida livre de progressão (SLP) e sobrevida global (SG) de 2,5 e 7,5 meses, respectivamente, limitados ao subgrupo PDL1+( ≥1% de PD-L1 pelo ensaio Ventana SP14290). Depois de receber aprovação acelerada do FDA em 2019, a fabricante Roche retirou a indicação em outubro de 2021, sob os resultados negativos do ensaio de fase III IMpassion131 (NCT03125902).
Na bula registrada na Anvisa, Tecentriq® em combinação com nab-paclitaxel mantém a indicação para o tratamento de pacientes com câncer de mama triplo negativo.
Outro imuno-oncológico que aparece na lista é o anti PD-1 pembrolizumabe, que teve revista a indicação para o tratamento do adenocarcinoma gástrico ou da junção gastroesofágica (JGE) em pacientes com doença avançada e PD-L1 positiva (com pontuação positiva combinada [CPS] ≥1), previamente expostos a 2 ou mais linhas de tratamento.
A aprovação definitiva dependia de dados confirmatórios dos ensaios de Fase 3 KEYNOTE-061 (NCT02370498) e KEYNOTE-062 (NCT02494583), que não atingiram o desfecho primário de sobrevida global e sobrevida livre de progressão. Em julho de 2021, a Merck anunciou a intenção de retirar a indicação de pembrolizumabe (Keytruda®) como terceira linha de tratamento no câncer gástrico/JGE nos EUA, seguindo recomendação do Oncologic Drugs Advisory Committee (ODAC) da FDA, que votou majoritariamente contra pembrolizumabe nesta indicação.
A bula registrada na Anvisa até hoje considera a indicação de pembrolizumabe no câncer gástrico/JGE nesse cenário de tratamento.
Na oncohematologia, a bula autorizada pela Anvisa continua a indicar ibrutinibe (Imbruvica®) no tratamento de linfoma de célula do manto (LCM) em pacientes expostos a pelo menos uma terapia anterior. A Anvisa também mantém a indicação de ibrutinibe como opção para linfoma da zona marginal (LZM) recidivado ou refratário. No entanto, a FDA considerou insuficientes as evidências de benefício clínico em estudos confirmatórios (os estudos de Fase 3 SHINE (NCT01776840) em LCM e SELENE (NCT0197444) em LZM). Em abril de 2023, a AbbVie anunciou a intenção de retirar voluntariamente essas indicações no mercado norte-americano. Por aqui, a Anvisa mantém as indicações e as prescrições continuam.
Ao lado desses seis medicamentos que tiveram indicações revogadas pela norte-americana FDA nos últimos 5 anos e continuam sendo utilizados no Brasil sem evidências de eficácia, outros dois agentes engrossam a lista: bevacizumabe (Avastin®, da Roche) e fludarabina. Ambos tiveram o registro sanitário revogado pela FDA em 2011. Avastin® perdeu a indicação no câncer de mama; fludarabina perdeu indicação como tratamento da leucemia linfocítica crônica de células B (LLC). Até hoje a Anvisa mantém essas indicações – e lá se vão quase 15 anos de registro.
Os resultados do estudo de Paulo Henrique de Freitas serão compartilhados pelo pesquisador com sociedades médicas, organizações de pacientes e com a própria autoridade regulatória. “Se a indicação já foi retirada nos EUA e o estudo foi negativo, por que ainda temos aqui?”, questiona o oncologista.
O cenário identificado pelo pesquisador põe em xeque os critérios da Anvisa e, em última instância, convida a refletir sobre o modelo de aprovação acelerada. Menos da metade dos medicamentos de aprovação acelerada mostraram benefício clínico em ensaios confirmatórios após cinco anos, concluiu estudo apresentado na AACR 2024 e publicado simultaneamente no JAMA Oncology.
Para o tratamento do câncer, até hoje 31 medicamentos aprovados pelo FDA pela via de aprovação acelerada tiveram revogada a indicação. Outros 66 ainda aguardam resultados clínicos confirmatórios de eficácia e segurança. “Costumo dizer que esses estão na penumbra”, compara Paulo Henrique.
O oncologista analisa o modelo de aprovação acelerada a partir da bioética principialista. “Na bioética temos 4 pilares fundamentais – autonomia, não maleficência, beneficência e justiça. Será que não estamos valorizando excessivamente o princípio da beneficência e esquecendo dos três outros pilares? O paciente está adequadamente informado de que se trata de uma aprovação provisória, que depende de dados confirmatórios para aprovação definitiva?”, questiona.
E mesmo medicamentos que já tiveram sua indicação revogada ainda despertam preocupação. “Entre a data da aprovação acelerada e a revogação, quantos pacientes foram tratados sem evidência?”, prossegue o especialista. “Quanto custou aos sistemas de saúde quase 3 anos de atezolizumabe, que recebeu aprovação acelerada em 8/3/2019 e teve revogada sua indicação em 25/9/2021?”, ilustra.
Por essas e outras, a Food and Drug Administration publicou em janeiro deste ano um guia de orientação que descreve novos critérios para ensaios confirmatórios em aprovações aceleradas. O objetivo central é justamente minimizar a exposição a terapias com falta de benefício.
O cenário preocupa. Para o sanitarista Gonzalo Vecina, fundador e ex-presidente da Anvisa, o alerta do pesquisador brasileiro é mais que necessário. “A Anvisa não é onisciente, não é onipotente, não é onipresente. Ela necessita da voz da sociedade, das entidades médicas, das entidades técnicas e científicas”, diz ele.
A fala do sanitarista está longe de isentar de responsabilidade a autoridade reguladora, mas propõe um olhar abrangente. “Em relação aos médicos que acreditaram na promessa desse tratamento, certamente alguns pararam de prescrever diante dos desfechos negativos dos estudos confirmatórios. Aqueles que continuam a prescrever incorrem em erro grave. Estão prometendo para os pacientes um benefício que não existe e isso foi reconhecido pelo patrocinador. No entanto, esse patrocinador não ter retirado a indicação do seu produto, mesmo sem benefício de eficácia, isso evidentemente também é muito grave. Claro que a agência não ter percebido tudo isso é igualmente da maior gravidade”, diz Vecina. “A Agência precisa ser cobrada disso”.
Até o fechamento desta reportagem, a Anvisa não havia se pronunciado sobre nossa solicitação de entrevista.
Medicamento | Indicação | Data de Retirada Pelo FDA |
Atezolizumabe | Atezolizumabe em combinação com nab-paclitaxel é indicado para o tratamento de pacientes adultos com câncer de mama triplonegativo localmente avançado irressecável ou metastático, cujos tumores apresentam expressão de PD-L1 ≥ 1% e que não tenham recebido quimioterapia prévia para doença metastática | 6/10/2021 |
Pembrolizumabe | Pembrolizumabe em monoterapia é indicado para o tratamento de pacientes adenocarcinoma gástrico ou da junção gastroesofágica recidivado recorrente, localmente avançado ou metastático com expressão de PD-L1 (pontuação positiva combinada [PPC] > 1) conforme determinado por exame validado, com progressão da doença em ou após duas ou mais linhas de terapias anteriores incluindo quimioterapia à base de fluoropirimidina e platina e, se apropriado, terapias-alvo HER2/neu | 4/02/2022 |
Atezolizumabe | Atezolizumabe como monoterapia é indicado para o tratamento de pacientes adultos com carcinoma urotelial (UC) localmente avançado ou metastático considerados inelegíveis à cisplatina e que tenham tumores com expressão de PD-L1≥ 5%. | 2/12/2022 |
Ibrutinibe | Ibrutinibe é indicado para o tratamento de pacientes adultos com Linfoma de célula do manto (LCM) que receberam no mínimo um tratamento anterior contendo rituximabe | 18/05/2023 |
Atezolizumabe | Atezolizumabe como monoterapia é indicado para o tratamento de pacientes adultos com carcinoma urotelial (UC) localmente avançado ou metastático após quimioterapia prévia à base de platina | 13/04/2021 |
Ibrutinibe | Ibrutinibe é indicado para tratamento de pacientes com linfoma de Zona Marginal, recidivado ou refratário, que receberam no mínimo um tratamento anterior | 18/05/2023 |
Fludarabina | Fludarabina é indicado para o tratamento inicial de pacientes com leucemia linfocítica crônica das células B (LLC) e para pacientes que não tenham respondido a, ou cuja doença tenha progredido, durante ou após, pelo menos um tratamento padrão contendo um agente alquilante | 31/12/2011 |
Bevacizumabe | Bevacizumabe em combinação com paclitaxel é indicado para o tratamento em primeira linha de pacientes com câncer de mama localmente recorrente ou metastático que não tenham recebido quimioterapia prévia para doença metastática ou localmente recorrente. | 18/11/2011 |
Fonte: Adaptado de “Panorama no Brasil dos medicamentos oncológicos aprovados pela via de Aprovação Acelerada do FDA que tiveram indicação retirada posteriormente nos EUA e opinião das partes interessadas”
Referências:
- FDA grants Genentech’s Tecentriq (atezolizumab) accelerated approval as initial treatment for certain people with advanced bladder cancer. News release. Genentech. April 17, 2017. https://www.roche.com/media/releases/med-cor-2017-04-18
- Roche provides update on Tecentriq US indication for previously untreated metastatic bladder cancer. News release. Roche. November 29, 2022. http://bit.ly/3Vj3JJr
- Study of Atezolizumab as Monotherapy and in Combination With Platinum-Based Chemotherapy in Participants With Untreated Locally Advanced or Metastatic Urothelial Carcinoma (IMvigor130). https://clinicaltrials.gov/ct2/show/NCT02807636
- FDA approves atezolizumab for PD-L1 positive unresectable locally advanced or metastatic triple-negative breast cancer.https://www.fda.gov/drugs/drug-approvals-and-databases/fda-approves-atezolizumab-pd-l1-positive-unresectable-locally-advanced-or-metastatic-triple-negative
- A Study of Atezolizumab in Combination With Nab-Paclitaxel Compared With Placebo With Nab-Paclitaxel for Participants With Previously Untreated Metastatic Triple-Negative Breast Cancer (IMpassion130). https://clinicaltrials.gov/study/NCT02425891
- Roche provides update on Tecentriq US indication for PD-L1-positive, metastatic triple-negative breast cancer. https://www.roche.com/investors/updates/inv-update-2021-08-27
- FDA approves pembrolizumab for HER2 positive gastric or gastroesophageal junction adenocarcinoma expressing PD-L1 (CPS ≥1).https://www.fda.gov/drugs/resources-information-approved-drugs/fda-approves-pembrolizumab-her2-positive-gastric-or-gastroesophageal-junction-adenocarcinoma
- Merck Provides Update on KEYTRUDA® (pembrolizumab) Indication in Third-Line Gastric Cancer in the US.https://www.merck.com/news/merck-provides-update-on-keytruda-pembrolizumab-indication-in-third-line-gastric-cancer-in-the-us/
- Final Decision on Withdrawal of Breast Cancer Indication for AVASTIN (Bevacizumab).https://www.federalregister.gov/documents/2012/02/27/2012-4424/final-decision-on-withdrawal-of-breast-cancer-indication-for-avastin-bevacizumab-following-public
- Update on IMBRUVICA® (ibrutinib) U.S. Accelerated Approvals for Mantle Cell Lymphoma and Marginal Zone Lymphoma Indications.https://news.abbvie.com/2023-04-06-Update-on-IMBRUVICA-R-ibrutinib-U-S-Accelerated-Approvals-for-Mantle-Cell-Lymphoma-and-Marginal-Zone-Lymphoma-Indications
- Sanofi-aventis, U.S., LLC; Withdrawal of Approval of a New Drug Application for OFORTA.https://www.federalregister.gov/documents/2012/04/25/2012-9943/sanofi-aventis-us-llc-withdrawal-of-approval-of-a-new-drug-application-for-oforta
- Liu ITT, Kesselheim AS, Cliff ERS. Clinical Benefit and Regulatory Outcomes of Cancer Drugs Receiving Accelerated Approval. JAMA. 2024;331(17):1471–1479. doi:10.1001/jama.2024.2396
- FDA Releases Draft Guidance on Confirmatory Trials for Accelerated Approvals.https://www.targetedonc.com/view/fda-releases-draft-guidance-on-confirmatory-trials-for-accelerated-approvals
- Hwang CS, Kesselheim AS, Kelkar AH, Cliff ERS, Rome BN. Changes in Oncology Medication Use After Withdrawal of Accelerated Approval. JAMA Oncol. Published online April 03, 2025. doi:10.1001/jamaoncol.2025.0359