Revisão sistemática e meta-análise liderada pelo cirurgião oncológico Raphael Araújo (foto), da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), buscou comparar as taxas de morbimortalidade pós-operatória entre pacientes com câncer de cabeça do pâncreas submetidos à cirurgia upfront e aqueles que receberam terapia neoadjuvante. Os resultados do estudo multicêntrico foram publicados no Journal of Surgical Oncology.
A ressecção pancreática, principalmente a pancreaticoduodenectomia (procedimento de PD ou Whipple), é um procedimento com alto risco de complicações pós-operatórias, e as fístulas pancreáticas representam uma importante fonte persistente de complicações. Apesar disso, a taxa de mortalidade diminuiu principalmente devido aos avanços nas técnicas cirúrgicas e no manejo perioperatório, em centros de alto volume, melhor diagnóstico inicial e melhorias na seleção de pacientes.
“Nos centros de alto volume, a taxa de mortalidade em 90 dias após a PD é de aproximadamente 3,5%, mas a morbidade pós-operatória (com complicações de todos os graus) permanece alta, em aproximadamente 50%. As complicações relacionadas a vazamentos anastomóticos e fístulas são a principal fonte de morbidade e estão associadas a hemorragia intra-abdominal e sepse potencialmente fatal”, explicam os autores.
O tratamento neoadjuvante foi investigado no cenário de lesões inicialmente ressecáveis, além de doença borderline e localmente avançada no momento do diagnóstico, na tentativa de conseguir um downstaging e um melhor controle local. “Essa estratégia pode se tornar ainda mais frequente com o uso generalizado do regime de FOLFIRINOX e ensaios em andamento. No entanto, a morbimortalidade aceitável associada ao uso de neoadjuvância para adenocarcinoma pancreático inicialmente ressecável, borderline ou localmente avançado já foi avaliada em ensaio clínico fase III (PREOPANC-01), porém seus dados ainda não foram publicados na íntegra”, acrescentam.
O estudo
Os pesquisadores identificaram 45 estudos relevantes a serem incluídos na metanálise, publicados entre 1998 e março de 2017. Vinte e nove estudos não-comparativos e dezesseis estudos comparativos foram identificados com dados acessíveis sobre o número de pacientes que apresentaram complicações e óbito no curso pós-operatório.
De um total de 3359 pacientes submetidos à ressecção pancreática, 1904 (56,6%) foram submetidos ao tratamento neoadjuvante e 1455 (43,3%) foram submetidos à cirurgia upfront. Os estudos comparativos contribuíram com um total de 2233 casos (66,4%).
O endpoint primário foram complicações pós-operatórias após PD para adenocarcinoma de pâncreas baseados nos dados fornecidos pelos autores. As definições de complicações pós-operatórias e seus graus não foram padronizadas e foram utilizadas de acordo com cada estudo. As análises de morbimortalidade foram divididas em estudos comparativos (com modelos de efeitos fixos e aleatórios para a razão de risco [RR]) e estudos comparativos não comparativos (com distribuições ponderadas das taxas).
Resultados
Nos estudos comparativos, tanto a morbimortalidade geral como as taxas de mortalidade não apresentaram diferenças significativas. Os intervalos do número de pacientes que apresentaram complicações no grupo comparativo foram de 9,9% a 98% no grupo da cirurgia upfront versus 5,6% para 96,7% no grupo de neoadjuvância. As taxas de mortalidade foram de 0% a 9% no grupo que recebeu a cirurgia upfront e de 0% a 10,2% no grupo do tratamento neoadjuvante.
As taxas de fístula pancreática nos estudos comparativos variaram de 0% a 16,5% no grupo da terapia neoadjuvante e de 2,4% a 30,2% no grupo submetido a cirurgia inicial.
Os estudos não comparativos apresentaram uma taxa global de complicações pós-operatórias de 29,5%, variando de 0% a 61,5%. As taxas de mortalidade dos estudos não comparativos variaram de 0% a 13%.
As taxas de fístula pancreática variaram de 0% a 31%, e a análise combinada mostrou uma taxa global ponderada de 5% (IC95%, 0,3‐0,7), com heterogeneidade de 30,12% no modelo de efeitos aleatórios.
Os resultados sugerem que em pacientes selecionados tratados por uma equipe cirúrgica experiente, a neoadjuvância para câncer de pâncreas não aumenta as taxas de complicações pós-operatórias e podem até sugerir um efeito protetor da abordagem. Embora não tenham sido detectadas diferenças significativas nas taxas gerais de morbimortalidade entre os grupos, as taxas não significativas de mortalidade foram maiores no grupo da neoadjuvância. “Não foi possível atribuir esse evento apenas aos efeitos do tratamento, pois o grupo de neoadjuvância também apresentava mais doença localmente avançada, exigindo procedimentos extensos com maior risco de complicações importantes”, concluem.
Os autores acreditam que as informações contidas neste estudo ajudam a fomentar o uso da neoadjuvância para pacientes que apresentam doença localmente avançada, ou até inicialmente ressecável, como uma terapia que pode viabilizar downstaging destes pacientes sem acrescentar morbimortalidade significativa ao procedimento cirúrgico. “Muitos pacientes não apresentam condições clínicas boas o suficiente para tolerar FOLFIRINOX, e a associação de radioterapia com outros regimes quimioterápicos menos tóxicos trazem uma opção terapêutica estes pacientes”, ressaltam.
Também participaram do estudo os médicos Raphael Silva, do Hospital Santa Casa, em Campo Mourão/PR; Cristiano de Pádua Souza, do Hospital de Amor; Jean Milani, da Unifesp; Ana Rezende, do Hospital Israelita Albert Einstein; Florence Huguet, da Universidade de Sorbonne, França; e Sebastien Gaujoux, do Hôpital Cochin, França.
Referência: Does neoadjuvant therapy for pancreatic head adenocarcinoma increase postoperative morbidity? A systematic review of the literature with meta‐analysis - Raphael L. C. Araujo; Raphael O. Silva; Cristiano de Pádua Souza; Jean M. Milani; Florence Huguet; Ana C. Rezende; and Sebastien Gaujoux - Surg Oncol. 2020;1–12. - https://doi.org/10.1002/jso.25851