Resultados de idosos com leucemia mieloide aguda após o transplante de células-tronco

Entre pacientes com mais de 65 anos que receberam um transplante alogênico de células-tronco hematopoiéticas para o tratamento de leucemia mieloide aguda entre 2000 e 2021, a sobrevida livre de leucemia e a sobrevida global melhoraram significativamente ao longo do tempo. Os resultados estão em artigo publicado na Clinical Cancer Research, periódico da American Association for Cancer Research (AACR). O hematologista Evandro Fagundes, líder nacional de Leucemias Agudas do grupo Oncoclínicas, analisa os resultados.

A leucemia mieloide aguda (LMA) é normalmente tratada com terapia-alvo ou quimioterapia intensiva, mas muitas vezes é necessário transplante alogênico de células-tronco hematopoiéticas (alo-HCT). No entanto, muitos pacientes com mais de 65 anos não eram considerados candidatos à quimioterapia intensiva ou alo-HCT.

Os avanços médicos nos últimos 20 anos - como melhores cuidados de suporte, agentes anti-infecciosos de nova geração e tipagem de antígeno leucocitário humano (HLA) de alta resolução - tornaram o alo-HCT uma opção mais segura e popular para pacientes idosos com LMA, que tem uma idade média de diagnóstico de 68 anos. “Ao longo do tempo, o progresso significativo no alo-HCT diminuiu a mortalidade e permitiu sua administração a pacientes mais velhos”, afirmaram os autores. “No entanto, há pouca informação disponível sobre o impacto global destas mudanças e os fatores preditivos para os resultados pós-transplante, e os dados disponíveis sobre os resultados de estudos retrospectivos e prospectivos são mistos”, observaram.

Nesse estudo, os pesquisadores analisaram um conjunto de dados da European Society for Blood and Marrow Transplantation, um grupo de trabalho de mais de 600 centros de transplante que reporta dados de transplante e acompanhamento para um registo central. O conjunto de dados compreendeu 7.215 pacientes que receberam seu primeiro alo-HCT para LMA aos 65 anos ou mais, entre 2000 e 2021. No momento dos transplantes, 64% dos pacientes estavam em sua primeira remissão completa de LMA (CR1), 14% estavam na segunda remissão completa da LMA (CR2+) e 22% tinham doença ativa.

Os pesquisadores avaliaram os resultados nos três anos imediatamente após o alo-HCT. Eles compararam os resultados de pacientes tratados entre 2000 e 2009 (728 pacientes), 2010 a 2014 (1.775 pacientes) e 2015 a 2021 (4.712 pacientes).

Resultados

O acompanhamento médio foi de 40 meses. A incidência cumulativa de recidiva (RI) de 3 anos diminuiu gradual e significativamente de 37% para 31%, depois para 30% (P = 0,001) durante os três períodos de tempo (2000–2009; 2010–2014; 2015–2021), enquanto a mortalidade sem recidiva (NRM) diminuiu de 31% entre 2000 e 2014 para 27% entre 2015 e 2021 (P = 0,003).

A sobrevida livre de leucemia (LFS) melhorou de 32% para 38%, e depois para 44% (P = 0,001) nos três períodos de tempo, enquanto a sobrevida global subiu de 37% para 42% para 49% (P = 0,001).

A incidência da doença do enxerto contra o hospedeiro (GvHD) crônica diminuiu de 35% entre 2000 e 2014 para 31% entre 2015 e 2021, e a sobrevida livre de GvHD e livre de recidiva aumentou de 22% para 29% para 34%.

Foram observadas melhorias em todos os resultados, exceto na mortalidade livre de recidiva, independentemente de os pacientes estarem na primeira resposta completa, na segunda resposta completa ou terem doença ativa no momento do transplante. Para os pacientes com doença ativa, no entanto, estas diferenças só foram significativas no período mais recente (2015 a 2021). Diminuições na mortalidade sem recidiva foram observadas apenas para pacientes que experimentaram sua segunda resposta completa.

“Juntamente com o aumento acentuado de pacientes idosos que recebem alo-HCT, observamos uma melhoria impressionante ao longo do tempo na sobrevida livre de leucemia e na sobrevida global”, afirmaram os autores. “Esses dados indicam que o alo-HCT não deve mais ser opcional, mas sim obrigatório para pacientes idosos”, concluíram. 

O estudo foi financiado pela European Society for Blood and Marrow Transplantation.

O estudo em contexto

 

Por Evandro Fagundes, hematologista, líder nacional de Leucemias Agudas do grupo Oncoclínicas

 

Primeiramente, é importante ressaltar que se trata de um estudo de registro do grupo de trabalho de leucemias agudas (ALWP) do Registro da Sociedade Europeia para Transplante de Medula e Sangue (EBMT). Nesse registro, mais de 600 centros de transplante distribuídos em vários locais do mundo informam de forma consecutiva e detalhada seus dados de transplantes realizados nas mais diversas condições clínicas, independentemente se o paciente está ou não participando de um ensaio clínico. Os dados são analisados de forma retrospectiva de acordo com a pergunta a qual os investigadores se propõem a responder.

Estudos de registros apresentam a vantagem de analisar um grande número de casos, praticamente impossível de se obter em um ensaio clínico prospectivo, e trazer elementos de vida real em condições geográficas distintas.

A LMA não está entre os tipos de câncer mais comuns; porém, está entre os mais letais. O tratamento ainda é baseado em quimioterapia intensiva que cursa com altíssimo risco de morbidade e mortalidade. Aproximadamente 60% a 80% dos pacientes jovens (aqui definidos como aqueles com menos de 60 anos de idade) alcançam remissão completa quando tratados com quimioterapia intensiva. Uma vez alcançada a remissão, o resultado tem de ser consolidado com alguma forma de tratamento intensivo que pode ser quimioterapia ou transplante de células tronco (TCTH). De um modo geral, a estratégia do melhor tratamento (transplante ou quimioterapia) e seus resultados são definidos por características biológicas da doença representadas por alterações cromossômicas e/ou mutações gênicas, e por condições clínicas do paciente que o abonam a realizar um tratamento intensivo.

 Um ponto importante é que a maioria dos pacientes de LMA tem mais de 65 anos de idade ao diagnóstico. Até um passado muito recente, o TCTH não era oferecido a esta população porque se temia que a mesma fosse “frágil” para suportar um tratamento tão intensivo. Isto aliado ao fato que alterações cromossômicas e/ou mutações gênicas que denotam prognóstico adverso e/ou resistência a drogas quimioterápicas são muito mais frequentes em pacientes idosos com LMA do que em jovens, faz com que a expectativa de vida e a probabilidade de cura sejam muito pequenas neste grupo.

Nos últimos anos houve considerável avanço na área de transplante, a saber: melhor tipagem de antígenos de histocompatibilidade melhorando a seleção de doadores, e consequentemente, reduzindo riscos de doença de enxerto versus hospedeiro, desenvolvimento de regimes de condicionamento menos intensivos, reduzindo complicações imediatas após o transplante, melhores drogas para tratamento de complicações infecciosas, maior oferta de doadores em registros nacionais e internacionais de doadores e o desenvolvimento do transplante haploidêntico onde o doador não precisa ser 100% compatível com o paciente para que o procedimento seja realizado. Esses avanços contribuíram para redução de mortalidade relacionada ao transplante, e também para a maior oferta do mesmo a pacientes com LMA. Isso fez com que pacientes com mais de 65 anos de idade (considerados para fins de pesquisa como idosos) mas com boas condições clínicas conseguissem realizar o TCTH e obter maior probabilidade de estar vivo a longo prazo e eventualmente curados de LMA.

Analisando uma enorme população de pacientes com LMA, o presente estudo confirma a factibilidade de realizar TCTH em pacientes idosos, oferecendo a eles a possibilidade de cura. Estes dados corroboram uma tendência crescente na prática médica entre os especialistas que tratam pacientes com LMA no Brasil.

Mais recentemente, o advento de tratamento de baixa intensidade com drogas alvo-específico tem possibilitado controle da LMA em pacientes que se apresentem mais fragilizados pela doença e que, portanto, teriam risco aumentado de complicações (até fatais) com a quimioterapia intensiva inicial. Uma vez passada a fase inicial de tratamento, e caso o paciente recupere suas condições clínicas basais pré-LMA, ele poderá ser submetido a um TCTH se essa for a estratégia desejada por ele e pela equipe médica assistente. Em termos práticos, isso significa que mais pacientes idosos poderão se beneficiar da estratégia de transplante.

Referência: Ali Bazarbachi, Myriam Labopin, Nour Moukalled, Nicolaus Kröger, Christina Rautenberg, Johannes Schetelig, Jürgen Finke, Igor Wolfgang Blau, Didier Blaise, Matthias Stelljes, Matthias Eder, Uwe Platzbecker, Peter Dreger, Wolfgang Bethge, Johanna Tischer, David Burns, Henrik Sengeloev, Eolia Brissot, Sebastian Giebel, Arnon Nagler, Fabio Ciceri, Mohamad Mohty; Improvements in Posttransplant Outcomes Over Two Decades in Older Patients with Acute Myeloid Leukemia in the EBMT ALWP Study. Clin Cancer Res 2024; https://doi.org/10.1158/1078-0432.CCR-23-3673