Preservação de órgão no câncer anal

Angelita_NET_OK.jpgEm artigo1 publicado em fevereiro no Lancet Oncology, especialistas brasileiros analisam o trabalho de Robert Glynne-Jones e colegas que fornece evidência definitiva que a regressão do tumor no câncer anal é um evento tempo-dependente. A cirurgiã Angelita Habr-Gama (foto), primeira autora do editorial, comenta com exclusividade para o Onconews.

A observação de Norman Nigro de remissão patológica completa em dois pacientes e remissão clínica em um paciente após quimiorradioterapia neoadjuvante fundou a moderna gestão do câncer anal.2 Desde essa publicação, a preservação de órgão se tornou o padrão de atendimento e agora é indiscutível entre os pacientes com carcinoma anal com resposta clínica completa à quimiorradioterapia neoadjuvante3, que ao invés de se submeterem à excisão abdominal perineal e a uma colostomia final definitiva podem preservar o ânus com bons resultados e qualidade de vida.4
 
“Hoje, no câncer do canal anal, operamos a minoria dos pacientes. A maior parte dos doentes, 87% responde completamente à radioquimioterapia. A partir daí nós observamos. O protocolo recomenda uma espera de 5 anos, mas eu pessoalmente não dou alta para os doentes”, afirma Angelita.
 
Em sua análise, os autores observam que talvez mais marcante do que a ausência de qualquer ensaio clínico randomizado controlado para demonstrar que nenhuma cirurgia é superior à cirurgia radical entre esses pacientes, é o fato de que a identificação dos pacientes com resposta completa era exclusivamente baseada na avaliação clínica. O simples exame de toque retal se tornou o único método para a avaliação da resposta entre esses pacientes, sem a necessidade de estudos complexos, elaborados ou caros para descartar a presença de doença microscópica.
 
Apesar das diferenças inerentes (e anátomo-patológicas) entre os cânceres anal e retal, anos mais tarde esta abordagem foi considerada aplicável a pacientes selecionados com adenocarcinoma do reto distal que apresentavam resposta clínica completa após tratamento com um esquema de quimioradioterapia parecido ao utilizado para o câncer anal, em uma abordagem pesquisada e defendida pela doutora Angelita.5
 
No entanto, os achados de Nigro e a abordagem de tratamento observacional aos pacientes com câncer do reto sofreram aceitação mais lenta na comunidade de oncológica e cirúrgica. Esses cânceres retais estão localizados a centímetros do ânus e têm sido recentemente considerados mais amplamente para uma estratégia de preservação de órgãos sem cirurgia radical imediata após uma resposta clínica completa.6, 7
 
“O canal anal é muito mais sensível à radioquimioterapia do que o câncer de reto. Mas o tratamento do câncer de reto tem evoluído, e cada vez mais se buscam novos regimes de radioquimoterapia com o objetivo de incrementar a resposta ao tratamento e obter resposta clínica completa. E para o doente, não ser submetido à uma cirurgia de câncer de reto ou do canal anal é uma grande vantagem”, diz a especialista.
 
No Lancet Oncology, Robert Glynne-Jones e colegas8, 9 fornecem uma contribuição adicional importante para a compreensão da cinética in vivo da resposta tumoral anal à quimiorradioterapia neoadjuvante. Na análise pós-hoc de seu estudo randomizado ACT II, ​​os autores fornecem evidência definitiva de que a regressão do tumor é um evento tempo-dependente.
 
Os autores mostram que o câncer anal requer tempo para responder ao tratamento e intervalos mais longos depois do término da quimiorradioterapia podem determinar maiores chances de desenvolvimento de uma resposta completa. A observação é de que o intervalo ideal para avaliar a resposta tumoral é de 26 semanas, um salto na prática clínica para o manejo desses pacientes, especialmente considerando que esse intervalo antigamente era de apenas 8 semanas.10 “A avaliação começou com 6 semanas, passou para 8, 9 semanas, e agora estamos falando em mais de 20 semanas”, comenta Angelita.
 
Em seu artigo, os especialistas brasileiros argumentam ainda que a presença de múltiplos investigadores/observadores e variedade de ferramentas ​​para avaliar a resposta tumoral também pode representar uma fonte de viés. Também não está claro se intervalos mais longos (ou seja, mais de 26 semanas) poderiam determinar ainda maiores índices de resposta completa.
 

Em conclusão, os pesquisadores acreditam que esses achados representam um marco importante após a contribuição original de Nigro e devem ser implementados na prática clínica para o benefício de pacientes com câncer anal em um futuro muito próximo. Além disso, argumentam, a cinética da regressão tumoral após a quimiorradioterapia neoadjuvante e a exatidão da avaliação clínica talvez não sejam únicos para o carcinoma anal. Tais efeitos podem ser comuns também ao adenocarcinoma retal após quimiorradioterapia neoadjuvante. “Estudos futuros dirão se os poucos centímetros de distância anatômica entre o câncer do ânus e do reto serão as únicas reais diferenças que separam estes dois cânceres dentro da luz do intestino grosso”, concluem. 

Referências:

1 - Angelita Habr-Gama, Guilherme Pagin São JuliãoRodrigo Oliva Perez. Anal cancer: leading the way - Published: 10 February 2017 - Open Access - DOI: http://dx.doi.org/10.1016/S1470-2045(17)30073-6- Volume 18, No. 3, p276–277, March 2017

2 - Nigro, ND, Vaitkevicius, VK, and Considine, B Jr. Combined therapy for cancer of the anal canal: a preliminary report. Dis Colon Rectum. 1974; 17: 354–356
 
3 - Benson, AB 3rd, Arnoletti, JP, Bekaii-Saab, T et al. Anal carcinoma, Version 2.2012: featured updates to the NCCN guidelines. J Natl Compr Canc Netw. 2012; 10: 449–454
 
4 - Allal, AS, Sprangers, MA, Laurencet, F, Reymond, MA, and Kurtz, JM. Assessment of long-term quality of life in patients with anal carcinomas treated by radiotherapy with or without chemotherapy. Br J Cancer. 1999; 80: 1588–1594
 
5 - Habr-Gama, A, Perez, RO, Nadalin, W et al. Operative versus nonoperative treatment for stage 0 distal rectal cancer following chemoradiation therapy: long-term results. Ann Surg. 2004; 240: 711–718
 
6 - Renehan, AG, Malcomson, L, Emsley, R et al. Watch-and-wait approach versus surgical resection after chemoradiotherapy for patients with rectal cancer (the OnCoRe project): a propensity-score matched cohort analysis. Lancet Oncol. 2015; 17: 174–183
 
7 - Perez, RO. Complete clinical response in rectal cancer: a turning tide. Lancet Oncol. 2016; 17: 125–126
 
8 - Glynne-Jones, R, Sebag-Montefiore, D, Meadows, HM et al. Best time to assess complete clinical response after chemoradiotherapy in squamous cell carcinoma of the anus (ACT II): a post-hoc analysis of randomised controlled phase 3 trial. Lancet Oncol. 2017; (published online Feb 10.)
 
9 - James, RD, Glynne-Jones, R, Meadows, HM et al. Mitomycin or cisplatin chemoradiation with or without maintenance chemotherapy for treatment of squamous-cell carcinoma of the anus (ACT II): a randomised, phase 3, open-label, 2×2 factorial trial. Lancet Oncol. 2013; 14: 516–524
 
10 - Deniaud-Alexandre, E, Touboul, E, Tiret, E et al. Results of definitive irradiation in a series of 305 epidermoid carcinomas of the anal canal. Int J Radiat Oncol Biol Phys. 2003; 56: 1259–1273