Judicialização: direito ou desvio

Lei_NET_Ok_2.jpgNo final de setembro, o Supremo Tribunal Federal (STF) voltou a discutir a judicialização da saúde: os Estados devem ou não pagar por medicamentos de alto custo fora da lista do SUS ou até sem registro da Anvisa? O mundo inteiro debate os custos e resultados dos novos tratamentos de câncer e seu impacto nos sistemas de saúde. O Brasil não foge à regra e o acesso aos chamados medicamentos de alto custo continua a alimentar debates acalorados. O problema é quando esse debate vai parar na Justiça e compromete a aplicação racional do orçamento da saúde.

“Hoje são 7 bilhões na judicialização de medicamentos de alto custo e o grande problema é aprofundar as diferenças, porque coisas muito básicas estão faltando que poderiam ser saneadas com esse dinheiro”, diz o oncologista Gustavo Fernandes, atual presidente da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC). “Quando você olha um juiz, um médico e um paciente com câncer diante de uma medicação revolucionária, de muito boa qualidade, mas que custa uma fortuna, qual a decisão? Esse recurso não nasce em árvore e a sociedade inteira precisa discutir até quanto vai pagar e quanto pode ser feito. O que eu defendo é que a gente precisa de regras, porque não é só o acesso ao medicamento e à saúde que é desigual no Brasil. O acesso à justiça também é”, argumenta Fernandes.

Levantamento realizado em 20121 pela Advocacia Geral da União mostra que entre as 18 demandas em processos judiciais que apresentaram o maior impacto no orçamento público, os oncológicos ocuparam parcela significativa. No topo da lista figuram brentuximabe-vedotina, erlotinibe, sunitinibe e temozolomida, além de agentes como rituximabe, sorafenibe e trastuzumabe.
 

  18 DEMANDAS COM MAIOR CUSTO PARA ATENDIMENTO DE AÇÕES JUDICIAIS (2012)
  MEDICAMENTO VALOR
  BRENTUXIMABE VEDOTINA 50 MG R$ 309.515,87
  ERLOTINIBE 150MG-COMPRIMIDO R$ 320.601,60
  MALEATO DE SUNITINIBE 50MG-CÁPSULA R$ 358.954,28
  TEMOZOLOMIDA 100MG-CÁPSULAS R$ 455.033,60
  BOSENTANA 125MG - COMPRIMIDOS R$ 708.900,60
  ALFA-1 ANTITRIPSINA - SOLUÇÃO ENDOVENOSA R$ 721.802,90
  PEGVISOMANTO 10MG - SOLUÇÃO INJETÁVEL R$ 881.650,99
  RITUXIMABE 500MG/50ML - INJETÁVEL R$ 1.108.400,70
  TOSILATO DE SORAFENIBE 200MG - COMPRIMIDO R$ 1.325.511,60
  MIGLUSTATE 100MG R$ 1.769.571,00
  LARONIDASE 100U/ML - SOLUÇÃO PARA PERFUSÃO R$ 10.597.226,21
  ALFALGLICOSIDASE - SOLUÇÃO INJETÁVEL R$ 12.235.633,54
  ECULIZUMABE 300MG - SOLUÇÃO PARA PERFUSÃO R$ 20.871.355,30
  TRASTUZUMABE 440MG - SOLUÇÃO INJETÁVEL R$ 22.517.685,85
  BETAGALSIDASE 35MG - SOLUÇÃO PARA PERFUSÃO R$ 26.387.905,15
  ALFAGALSIDASE 3,5MG - SOLUÇÃO PARA PERFUSÃO R$ 40.676.764,09
  GALSULFASE 5MG/5ML - INJETÁVEL R$ 63.944.457,63
  IDURSULFASE 2MG/ML - SOLUÇÃO INJETÁVEL R$ 73.713.668,80
     
  TOTAL R$ 278.904.639,71
  Fonte: Advocacia Geral da União  
     

Em 2010, estudo de quatro pesquisadores2 lançou luz sobre a magnitude do problema em São Paulo no biênio 2006-2007, revelando que sete medicamentos para o tratamento do câncer adquiridos por determinação judicial - bevacizumabe, capecitabina, cetuximabe, erlotinibe, rituximabe, imatinibe e temozolomida - geraram gastos superiores a R$ 40 milhões para atender 1.220 solicitações no período, com custo médio de R$ 33,5 mil por paciente.

Entre os pedidos, um pouco de tudo: remédios de alto custo que há tempos estão na lista do SUS aparecem ao lado de ações pleiteando drogas ainda sem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária. De lá para cá, o cenário se agravou e uma avalanche de processos continua a chegar à Justiça. Nos últimos seis anos, o governo federal gastou R$ 3,9 bilhões, um aumento de 727% nos gastos da União com ações para cumprir decisões judiciais.

Para Jairo Bisol, Promotor de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal, a demora no registro de novos agentes e na atualização das listas de medicamentos ajuda a fomentar as demandas e deixa claro que o aumento da judicialização na oncologia reflete, em certa medida, dificuldades estruturais. “A oncologia é de alta complexidade, o que toca no problema dos medicamentos de alto custo e toca no problema da atualização de protocolos. Temos essa tensão entre exigir somente o que já está nas listas de alto custo e nos protocolos, que não estão atualizados de forma razoável, e vários aspectos balançam nessa equação, ora para o lado do interesse público de harmonizar e organizar a gestão, ora para interesses que não representam o interesse global da sociedade”, avalia.

Se é verdade que as decisões do Estado são por vezes lentas e burocratizadas, também é verdade que a pressão pela inovação na saúde tem impacto nos sistemas globais. O mundo inteiro debate como pagar a conta do cardápio de última geração, que inclui drogas-alvo, imunoterápicos e sofisticados testes de seleção molecular.

Luiz Henrique Gebrim, Diretor Médico do Hospital Pérola Byington, em São Paulo, propõe uma reflexão. “O grande problema da judicialização é que se eu der o tratamento caro para um paciente, vou deixar de custear o tratamento para outros dez. E esses dez terão mais chances de morrer do que aquele um que, muitas vezes, é um caso grave e vai obter pequenos ganhos. O juiz não vê isso, mas a partir do momento em que ele dá um ganho, precisa haver então uma repactuação. E aquele que não tem advogado para brigar? Eu acho que não é justo”, avalia.

Caminhos e possibilidades

“Quando começou essa história de custo-efetividade, um debate ético muito grande foi sobre a diálise. Então, quanto vale um dia de diálise? A gente tem que partir para esse tipo de análise e não é para limitar o acesso, ao contrário. É para poder pressionar também o dono da tecnologia, porque não adianta só jogar para o Ministério da Saúde, para o governo, para a Justiça. Você tem que pressionar o sistema inteiro e ajudar esse sistema a se estruturar”, defende o presidente da SBOC.

A Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica quer qualificar a prescrição e valorizar o nível de evidência. “A SBOC está formulando diretrizes, já temos algumas prontas e vamos começar a publicar. São diretrizes baseadas única e exclusivamente em análises de evidências, sem nenhuma análise de custo-efetividade”, esclarece.

Como exemplo, a SBOC ilustra a imunoterapia, considerada o avanço do ano pela revista Science em 2013 e que continua a concentrar as atenções e a fomentar o ambiente de pesquisa em busca de novos inibidores de checkpoint imunológico. “É inegável o benefício de terapia imunológica para melanoma, por exemplo, porque traz um ganho incrível, mas é um nicho pequeno de pacientes. O que você vai fazer, oferecer dacarbazina? E o médico dorme em paz com isso? A evidência em favor da imunoterapia é robusta, não há discussão”, entende Fernandes. “Se a gente não vai dar porque é caro, isso precisa ser dito. O ministério tem todo o direito de racionalizar os recursos, mas o critério precisa ser claro”, defende.

A moderna imunoterapia de fato ajuda a ilustrar o problema, mas fica difícil deixar de considerar a perspectiva da farmacoeconomia. Estimativas indicavam que a combinação do anti CTLA-4 ipilimumabe com o anti PD-1 nivolumabe no melanoma metastático ultrapassaria a cifra de 1 milhão de dólares por paciente3 nos Estados Unidos.

Os promotores com atuação na área da saúde também reconhecem a importância de qualificar o debate. “Criamos a Associação Nacional do Ministério Público de Defesa da Saúde (AMPASA), em um trabalho articulado com o movimento da reforma sanitária, que foi determinante na construção do SUS e é determinante para a manutenção dessa política pública de saúde”, avalia Bisol. “Talvez nós não tenhamos mesmo um estado de direito articulado e consolidado para uma política tão avançada como o SUS”, prossegue. “Vivemos esse arremedo e o drama de uma política que não se efetiva por falta de vontade do Estado. Tudo isso vai acabar no Judiciário, o que se transforma em um outro drama, porque o Poder Judiciário não foi concebido para esse volume tsunâmico de ações decorrentes de uma política não realizada, em um país onde a Constituição estabelece como direito de todos e dever do Estado a assistência em saúde. É uma tragédia em curso”.

Em relação à judicialização, a oncologista Maria Inês Pordeus Gadelha, Diretora do Departamento de Atenção Especializada e Temática da Secretaria de Atenção à Saúde, esclarece que o Conselho Nacional de Justiça e o Ministério da Saúde assinaram em agosto um termo de cooperação. “É um termo que prevê a implantação de um sistema que tem de correr muito bem para atender à necessidade de agilidade do juiz e dar a ele subsídios técnicos para a tomada de posição”, explica Maria Inês.

A ideia é instituir um formulário para embasar os pedidos na Justiça. “Os processos judiciais que eu vejo são tão mal instruídos que chegam a espantar, porque a maior parte da alegação é feita pelo lado do advogado. Do lado do médico, quando muito, consta um pequeno relatório dizendo que aquilo é essencial, porque a maioria nem isso tem, é só a receita - e uma receita que tampouco segue os critérios de uma receita médica, como padronizada pelo Conselho Federal de Medicina. Sequer chega a ter posologia”, critica. “Nós estamos padronizando algo para o juiz dizer para o médico e para o advogado que aquela ação só será aberta se tiver aquele formulário devidamente preenchido. Vai além da receita médica”, acrescenta.

Referências:

1) Intervenção Judicial na saúde pública - Panorama no âmbito da Justiça Federal e apontamentos na seara das Justiças Estaduais, Advocacia Geral da União, 2012

2) Uso racional de medicamentos antineoplásicos e ações judiciais no Estado de São Paulo, Lopes et al, Rev. Saúde Pública vol.44 no.4 São Paulo Aug. 2010, disponível em http://dx.doi.org/10.1590/S0034-89102010000400005

3) Cost of Immunotherapy Projected to Top $1 Million per Patient per Year, ASCO POST, julho de 2015, disponível em http://www.ascopost.com/issues/july-10-2015/cost-of-immunotherapy-projected-to-top-1-million-per-patient-per-year/