Diretrizes brasileiras para o rastreamento do câncer do colo do útero

GLAUCO_NET_OK.jpgGlauco Baiocchi Neto (foto), diretor do departamento de Ginecologia do A.C. Camargo Cancer Center e membro do Grupo Brasileiro de Tumores Ginecológicos (EVA/GBTG) analisa a atualização das diretrizes de 2016 e o rastreamento do câncer do colo do útero no Brasil. "A grande barreira parece estar na cobertura populacional inadequada, na qualidade dos exames de citologia e na dificuldade do referenciamento das mulheres com citologia alterada", avalia.

O rastreamento do câncer do colo do útero pode ser considerado um modelo em oncologia, pois o fator causal é conhecido (infecção pelo HPV de alto risco), o órgão alvo é de fácil acesso ao exame físico e as lesões precursoras (NIC) em geral levam um grande tempo para evoluir, podendo ser diagnosticadas e tratadas. Além disso, tanto a infecção pelo HPV quanto as lesões pré-malignas podem regredir espontaneamente.
 
É essencial no rastreamento do câncer do colo do útero estabelecer não somente a metodologia do rastreamento, mas também a população alvo (início e fim do rastreamento) e a periodicidade. Como em qualquer rastreamento de câncer, nenhum tipo de rastreamento é capaz de detectar todos os casos prevalentes ou incipientes e pode ser considerado objetivo do rastreamento uma alta detecção de NIC3+ no rastreamento inicial e a diminuição de NIC3+ nas rodadas subsequentes.
 
A realização periódica da citologia oncótica ainda é a estratégica mais amplamente utilizada no mundo e a incidência do câncer do colo do útero vem caindo progressivamente desde os anos 40, principalmente em países onde a cobertura populacional do exame citopatológico é adequada. No Brasil o rastreamento é oportunístico, onde as mulheres realizam a colpocitologia oncótica ao procurar os serviços de saúde e, portanto, há um grande número de mulheres sem cobertura. Portanto, é consenso que o rastreamento organizado é o grande desafio para que se obtenha a melhor relação custo-benefício possível e maior cobertura populacional1,3.
 
Em 2016 as Diretrizes Brasileiras para o Rastreamento do Câncer do Colo do Útero foram atualizadas por um painel de respeitáveis especialistas e cada recomendação é baseada em níveis de evidência. O texto traz não só as recomendações atuais do Ministério da Saúde para o rastreamento, mas ainda a conduta a ser seguida na atenção básica à saúde no caso de alteração da citologia oncótica.
 
Comparado com as diretrizes anteriores de 2011, não houve mudança em relação ao início, término e periodicidade do rastreamento. Sugere que o rastreamento com colpocitopatologia oncótica deve iniciar aos 25 anos de idade, sendo os 2 primeiros exames com intervalo anual. Caso sejam negativos, os próximos intervalos devem ser a cada 3 anos e seguir até os 64 anos de idade. Comparado com as diretrizes de 2011, foram realizadas algumas mudanças no texto com fluxogramas de condutas simplificados e adição de tópicos complementares (tipo de excisão cirúrgica, avaliação do canal endocervical e medidas para auxiliar a visualização da JEC).
 
Apesar da crescente evidência da literatura e amplo uso do teste para detecção do HPV de alto risco no rastreamento do câncer do colo, a presente diretriz somente cita sua possibilidade de uso nas recomendações dos achados de citologia oncótica alterada. Importante ressaltar que o teste do HPV de alto risco não é contemplado pelo SUS.
 
Um exemplo da recomendação da pesquisa do HPV no rastreamento do câncer do colo do útero são as diretrizes norte-a mericanas (ACS/ASCCP/ ASCP/USPSTF), onde sugerem o início do rastreamento aos 21 anos, mulheres entre 21 e 29 anos são rastreadas com citologia a cada 3 anos e entre 30 e 65 anos a abordagem preferencial é a associação de citologia e teste HPV de alto risco a cada 5 anos4,5.
 
Recentemente foi publicada uma revisão de intervalo da diretriz norte-americana onde foram analisados os dados mais recentes sobre uso de HPV no rastreamento primário6. Foi reforçado que o teste de HPV negativo prediz melhor a ausência de NIC3+ que a citologia oncótica, sugerido que o teste de HPV isolado pode ser considerado alternativa à associação do HPV com citologia oncótica e que o teste do HPV seguido de genotipagem dos HPVs tipos 16 e 18 é uma opção na triagem para colposcopia ou citologia reflexa6,10.
 
Apesar de toda evidência a favor do uso do teste HPV de alto risco no rastreamento do câncer do colo do útero, a diretriz atual brasileira ainda não inclui ou sugere seu uso. A grande barreira atual do rastreamento no Brasil não parece estar no não financiamento público do teste do HPV, mas sim na cobertura populacional inadequada, na qualidade dos exames de citologia realizados e na dificuldade do referenciamento das mulheres com citologia alterada. Em resumo, no Brasil deve-se ainda investir no rastreamento organizado e de maior cobertura populacional e a presente diretriz contempla a realidade da maioria da população.
 
*Diretriz publicada conforme Portaria Nº 497, de 9 de maio de 2016.
 
Autor: Glauco Baiocchi Neto é Mestre e Doutor em Oncologia pela FMUSP, diretor do departamento de Ginecologia Oncológica do AC Camargo Cancer Center e membro do Grupo Brasileiro de Tumores Ginecológicos (EVA/GBTG).
 
Referências:
 
1. Anttila A, von Karsa L, Aasmaa A, et al. Cervical cancer screening policies and  coverage in Europe. Eur J Cancer. 2009; 45(15): 2649-58. 
 
2. Quinn M, Babb P, Jones J, Allen E. Effect of screening on incidence of and  mortality from cancer of cervix in England: evaluation based on routinely collected  statistics. BMJ 1999; 318(7188): 904-8.
 
3. Adab P, McGhee SM, Yanova J et al. Effectiveness and efficiency of opportunistic cervical cancer screening: comparison with organized screening. Med Care. 2004;42(6): 600-9. 
 
4. Saslow D, Solomon D, Lawson HW, et al. American Cancer Society, American Society for Colposcopy and Cervical Pathology, and American Society for Clinical Pathology screening guidelines for the prevention and early detection of cervical cancer. CA Cancer J Clin. 2012;62:147-172. 
 
5. Moyer VA. Screening for cervical cancer: US Preventive Services Task Force recom- mendation statement. Ann Intern Med. 2012;156:880-891, W312. 
 
6. Huh WK, Ault KA, Chelmow D, et al. Use of primary high-risk human papillomavirus testing for cervical cancer screening: interim clinical guidance. GynecolOncol. 2015;136(2):178-82.
 
7. Ronco G, Dillner J, Elfström KM, et al. Efficacy of HPV- based screening for prevention of invasive cervical cancer: follow-up of four European randomized controlled trials. Lancet 2014;383(9916):524–32.
 
8. Dillner J, Rebolj M, Birembaut P, et al. Long term predictive values of cytology and human papillomavirus testing in cervical cancer screening: joint European cohort study. BMJ 2008;337:a1754.
 
9. Gage J, Katki HA, Schiffman M, Castle PE, Fetterman B, Poitras NE, et al. Reassurance against future risk of precancer and cancer conferred by a negative human papillo- mavirus test. J Natl Cancer Inst 2014;106(8):1–4.
 
10. Wright TC, Stoler MH, Behrens CM, Sharma A, Zhang G, Wright TL. Primary cervical cancer screening with human papillomavirus: end of study results from the ATHENA study using HPV as the first-line screening test. GynecolOncol 2015;136(2):187–95.