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AtualizadoQui, 28 Mar 2024 7pm

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Daichii Sankyo

 

Um tributo à experiência

Humberto Torloni  compõe uma análise da assistência oncológica, com os olhos e a experiência de quem ainda hoje vive o cotidiano de um hospital de câncer.


Torloni_Web_1_OK.jpgFica fácil colecionar histórias de vida diante de uma biografia tão extensa, dessas recheadas de personagens cativantes e lições inspiradoras. Humberto Torloni chega aos 90 anos como um dos grandes nomes da oncologia brasileira, um dos fundadores do AC Camargo Cancer Center e literalmente velho conhecido da pesquisa nacional, ele próprio integrante de seu time de elite.

“Sou apenas um homem que gosta da vida”, resume com a disposição de sempre para um bom papo, de preferência com o toque de irreverência que traz como um dos traços mais cativantes da sua personalidade. É para uma boa prosa que ele nos recebe no seu apartamento em São Paulo para contar da vida e compor uma análise da assistência oncológica, com os olhos e a experiência de quem ainda hoje vive o cotidiano de um hospital de câncer.

Para evitar constrangimentos futuros, avisa: “Qualquer palavrão que eu disser, espero que seja retirado do contexto”.
O pedido ilustra um pouco da personalidade de Humberto Torloni, homem de fala livre e de opiniões às vezes carregadas de adjetivos impublicáveis.

A genética favorável é herança do pai, também longevo, que morreu aos 102 anos e deixou como exemplo o valor da educação. A regra da casa era ter diploma e não tinha conversa. Torloni fez bonito. Não só obteve a graduação em Medicina pela Unifesp, já naquela época uma das escolas médicas mais conceituadas do país, como cruzou fronteiras, primeiro para integrar o staff da Organização Mundial de Saúde, em Genebra; depois na Organização Pan-Americana de Saúde, em Washington. Nada mal para um menino nascido em Bica da Pedra, no interior paulista, filho de imigrantes, o quinto de dez irmãos.

Hoje, do alto dos seus 90 anos, ele assiste à superespecialização da medicina, comemora a era da terapia personalizada e os avanços da biologia molecular. “É uma nova fronteira que começa a ser desbravada no tratamento do câncer”, diz. A seguir, um registro dos melhores momentos com Humberto Torloni.

1) O que o senhor acha do momento atual da ciência brasileira?
HT -
Acho que temos questões muito importantes no cenário científico hoje. A queda da USP na classificação internacional é uma delas. Li outro dia que nossas universidades não aparecem mais nas classificações internacionais. Então, a Universidade de São Paulo, que sempre foi uma liderança, não faz mais parte do ranking, nem a Unicamp, outra grande universidade. Perdemos pontos na classificação que considera as maiores instituições de ensino do mundo e isso é o retrato do descaso, da falta de investimento, da falta de infraestrutura. A educação tem sido desprestigiada de ponta a ponta. A maior frustração das lideranças acadêmicas desse país é assistir a esse abandono. A universidade brasileira vai mal e nem por isso está na agenda de prioridades, porque as autoridades preferem construir estádios de futebol. Outra enorme frustração é a agonia da pesquisa clínica brasileira, é ver que muitos cérebros estão sendo absorvidos pelo primeiro mundo porque a burocracia atrapalha a vida do pesquisador. Aquele indivíduo que vê na vitrine da ciência o que pode ser feito e se depara com a dificuldade de fazer pesquisa aqui, ele é um capital humano que o Brasil vai perder. Lá fora, um mundo de oportunidades, um potencial gigantesco. Aqui, não tem luz, não tem reagente, não tem uma regulação que sirva à pesquisa.

2) Tudo isso interfere na formação do médico hoje?
HT -
Eu vejo que a formação médica está no centro de um debate muito maior e mais complexo. Claro que tem que Torloni_Web_3_OK.jpgmelhorar a formação médica, tem que investir em universidade de excelência e tem que fazer pesquisa. Mas do jovem médico se exige toda uma bagagem de conhecimento, a superespecialização, a tecnologia. Ele hoje tem que aprender o básico que se aprendia anos atrás, mas precisa fazer melhor, porque existe todo um conhecimento, existe toda a retaguarda da área da imagem, da medicina nuclear. Por outro lado, o salário do médico está muito apertado. Falam que começa com 10 mil, mas tem plantão pagando 800 reais por mês. Não dá! Isso faz com que o médico deixe de se atualizar. Esse é o perfil do médico que sai por aí tratando câncer e câncer mexido é pior do que árvore mal podada, que não dá flor, não dá fruto, não dá nada. O problema não é só na esfera do câncer, porque a tragédia do atendimento primário e secundário também está aí para mostrar. Se a formação não é dignificada, o futuro profissional fica comprometido desde a base. A medicina vive hoje esse desafio. Em Cuba, por exemplo, a formação médica é de três anos e veja que agora eles podem exercer a clínica aqui. A saúde do brasileiro vale tão pouco? Essa é uma questão que também está na raiz da formação médica atual.

3) E a humanização do tratamento do câncer, onde entra nesse caldeirão?
HT -
A humanização do tratamento de qualquer doença começa com a relação médico-paciente. Eu, paciente, estou me lixando para esse equipamento tecnológico que o senhor está usando. O que eu quero saber, doutor, é se isso que o senhor está indicando funciona, se o senhor daria isso para a sua mãe. Essa é a grande pergunta. O doente chega no consultório e ninguém vai lá para te dar parabéns, vai para se queixar porque está com problema. Mas ele quer falar e você não quer ouvir. “Você não está me ouvindo e está digitando”. Hoje, temos esse tipo de reclamação, que é a expressão do que acontece por aí. Você nem ouviu a história inteira, você está apressado com a sua agenda e está com muita tecnologia à disposição, doutor. A agenda do médico hoje é uma pancadaria e a pressão das novidades é violenta. O sujeito faz uma cirurgia robótica, ele aprende a dirigir um carro de corrida. Tem muita propaganda, mas não adianta dar uma Ferrari para um motorista de quinta categoria. Ele vai bater do mesmo jeito. Então, a humanização do atendimento depende da tecnologia? A tecnologia não fala, o robô não interpreta a queixa do paciente, nem está ali na hora do olho no olho. Se a superespecialização é muito rápida, começo a ouvir menos o doente e esse é o grande perigo, a grande cilada. Costumamos falar muito das carências da política pública. Eu incluiria nesse guarda-chuva a política dos convênios, que também tem suas mazelas. Estamos cansados de ouvir “olha, o doutor pediu, mas o plano de saúde não paga”.

4) O universo da Oncologia impõe ao médico um desafio a mais?
HT -
Não tenho dúvida. O camarada que veste o avental branco tem que ter uma formação mental, além da competência. Ele é bom na cirurgia, na radioterapia, etc, mas tenho pena da vida social de um médico que trabalha com câncer e não se disciplina. Ele precisa de reforço. Quando veio a psiquiatria aqui no hospital, pensei no suporte às famílias, na ajuda aos doentes, mas cheguei a dizer que o maior grupo de risco é sem dúvida dos profissionais médicos, que diariamente recebem a densidade daquela carga. Lidar com situações difíceis, lidar com a morte é sempre uma tarefa de enorme complexidade, por mais educado e preparado que seja o médico. Nunca é fácil e acho que está faltando suporte. O homem que está atrás do médico, coitado, às vezes não sei como é que ele vive. Muitas vezes ele se superprotegeu, fez uma blindagem para lidar com o câncer.

5) Como é lidar com a terminalidade da vida?
HT -
Esse é um confronto sempre muito delicado. Entra religião nisso? Muitos acham que ajuda se acreditar na ressurreição, na reencarnação. Diante de uma situação difícil, de um desastre, cada um tem uma reação. Quando vem a notícia do câncer é uma pancadaria. Você é casado, tem filhos, a mulher está com câncer e vocês tinham planejado ir até o Everest. Dá pra ir? Então, vai até mais perto, fotografa e desce. É assim, fazer o quê? Eu costumo dizer que o câncer e o doente têm sua semelhança e sua particularidade. O doente tem RG, CPF, o câncer tem a classificação internacional, que é uma grande identidade, tem a morfologia, a citologia, que também dão a identidade da doença. Mas o câncer não entra em depressão, não tem lágrimas, não se desespera. A experiência de sofrimento do doente vai muito além da natureza biológica do tumor.

6) O senhor é um observador privilegiado, que acompanha gerações de médicos no tratamento do câncer. O que fica de marca mais emblemática dessa mudança que o senhor viu acontecer?
HT -
Nós estamos falando da evolução de três ou quatro gerações. O progresso tecnológico foi fascinante e mudou a atitude do médico face à patologia, seja ela qual for. As doenças transmissíveis, parasitárias e virais praticamente estão sob controle terapêutico. As doenças crônicas são um desafio, mas indiscutivelmente tivemos um avanço muito grande. Hoje se fala em cirurgia robótica, em droga alvo molecular, em sequenciamento da expressão gênica. É uma vigilância contínua para o aperfeiçoamento. Quebraram a barreira da célula e isso é um milagre do ponto de vista da anatomia patológica. Com a tecnologia avançada, a identidade celular vai se tornar cada vez mais rica. Antigamente, a classificação dos tumores era pela forma, coloração, configuração, porque víamos a célula com a membrana, o núcleo e o citoplasma. Agora não. Eles desdobraram a membrana da célula, abriram a barreira e descobriram características que permitiram inaugurar a era da terapia personalizada, como temos agora. Se não fosse isso, o índice de cura não seria o que é hoje.

7) Inevitável falar da fundação do AC Camargo e de uma gincana que destacou um jovem estudante de medicina nos anos 50. Conta pra gente essa história?
HT -
Aos 16 anos eu estava concluindo o último ano do colégio em Santos, quando minha mãe morreu de infecção, depois de uma cirurgia para remover um colecistite calculosa. O Fleming só descobriu o antibiótico dois anos depois. E quando eu perdi o manto protetor da mãe, meu perfil começou a mudar. Pensei: você tem que se virar, na raça! Decidi estudar medicina, seguindo os passos do meu irmão Hilário, que chegou a ser vice-governador de São Paulo, e estava na época no quarto ano de medicina. O estudo, na visão do Mateus, meu pai, era sempre o melhor investimento, mas a despesa de manter 10 filhos não era brincadeira. Minha mãe, entre as muitas atividades de uma mãe naquela época, era uma grande costureira e as roupas dos meus irmãos mais velhos ela cortava e costurava para mim, ajeitava os sapatos, que também não tinha calçado novo toda hora, como é hoje. Com a morte da minha mãe, saí de Santos e me mudei para São Paulo. Fui para a Escola Paulista de Medicina, onde entrei em 1942 e saí em 1948, um período de muita luta. Eu não tenho nada contra a classe social, mas subir a escada da vida não é fácil. Em São Paulo, fui morar numa pensão na Rio Branco, dava aula à noite no Brás e via meus colegas de carro, eu sempre de bonde. Foi quando a Associação Paulista de Combate ao Câncer anunciou uma gincana e o prêmio era uma bolsa de estudos fora do país. Era o meu passaporte!

8) O senhor já tinha a ideia de se especializar na anatomia patológica?
HT -
Não, nem de longe. No quarto ano da escola de medicina comecei a trocar impressões com os colegas sobre o futuro. Ter um diploma de médico naquela época era como ter uma carta de motorista, você podia ir para onde quisesse e escolher o caminho. A dificuldade é que não tinha residência naquele tempo. Então, os colegas que queriam trabalhar no interior como obstetras, em cidades agrícolas, treinavam parto fazendo muito plantão por aí, sem remuneração. Eles se sacrificavam e usavam o tempo livre para percorrer várias maternidades de São Paulo e muitas vezes cobriam os plantões lá no Tatuapé, na maternidade Leonor Mendes de Barros, que ainda funciona. São Paulo em 1950 não era o que é hoje e a formação médica era outra, muito diferente. Era uma residência baseada na prática, sem a tutoria de agora. Eu nem sonhava em ser patologista. Só sabia que não queria ser cirurgião. Vejo o médico como um excelente costureiro, o alfaiate também. Mas se o alfaiate não gostar, ele joga fora a mercadoria. E o cirurgião? Só de pensar no ato cirúrgico, eu ficava assustado, porque achava uma responsabilidade enorme entrar no corpo humano. E eu dizia, olha, não quero cortar ninguém. Mal sabia que ia abrir muito defunto. Quando fui embora para o exterior já tinha feito mais de 300 autópsias.

9) E qual foi a sua estratégia para ganhar a tal gincana e a bolsa de estudos?
HT -
Foi uma estratégia que veio da necessidade. Apareceu aquela oportunidade e como eu não tenho sangue azul, nem passado nobre, fiz um plano mental para arrecadar o máximo de dinheiro cobrando o mínimo, porque a proposta do concurso era premiar quem levantasse mais dinheiro para a construção de um hospital de câncer. Não fui bater na porta da elite, nem dos banqueiros. Fui falar com os operários da região que eu conhecia bem. Comecei lá no Brás, na rua Javari, em uma grande tecelagem. O pessoal do RH deu a licença para falar com os funcionários no refeitório, na hora do almoço, e eu dizia a cada um para doar um dia de trabalho e contribuir com a construção do futuro hospital de câncer. Visitei uma série de fábricas no Tatuapé, Brás, Pari. E fui depois na rede escolar dessa mesma região, para pedir apoio aos pais das crianças. O povo foi generoso comigo e com o hospital. Chegou o dia do final do concurso e eu fui lá com o meu irmão Nicolau, com dinheiro vivo. Hoje eu não faria isso de jeito nenhum! Mas fui com cuidado, o Nicolau que era mais alto ficou do lado de fora, tudo combinado! E aí fui conhecer o Dr. Antonio Prudente e os projetos que ele tinha, ousados para a época.

10) Era o conceito de hospital-escola?
HT -
Exato, porque o Prudente sempre teve essa visão. Os princípios da cirurgia oncológica já eram ensinados no hospital-escola que o Antonio Prudente mantinha desde aquela época, com convênio ou sem convênio. Era um tempo em que se fazia muita autópsia, o que eu já previa quando fui convidado para dirigir a anatomia patológica. A ideia não era transformar o hospital do câncer em um biotério humano, mas sabíamos que era preciso usar os cadáveres para o ensino. Eram autopsias discutidas em reuniões anatomoclínicas realizadas duas vezes por mês, em um modelo totalmente interativo. O que o senhor acha dessa febre que o paciente apresentava? E essa dor que ele tinha? Na mesa ficava o residente para fazer o relatório médico, o patologista, o clínico. As reuniões eram gravadas, fotografadas, e a gente provocava a discussão, em um modelo que copiamos do hospital geral das mulheres, o Massachussets General Hospital. Adaptamos isso para um hospital de câncer, porque a unidade já era verticalizada, só câncer, e desde o começo o hospital combinou ensino e assistência.

Torloni_Web_2_OK.jpg11) Já dizia Vinícius de Moraes que a vida só se dá pra quem se deu. Do alto dos seus 90 anos, o senhor acha que é uma verdade?
HT -
A gente aprende se tiver ouvidos e se aguçar o olhar. São dois dons de Deus que você tem que agradecer. Quando eu fui para os Estados Unidos todo mundo vinha dizer ”Torloni, como vai ser, você não fala uma palavra de inglês!” E eu respondia: “E daí? Ninguém lá está interessado em saber o pouco que eu sei. Estou indo para ouvir, para aprender. E pronto, acabou!” Você pode aprender sempre, desde que você não tenha uma capa de impermeabilização. Você aprende até por osmose. Eu, quando estava nos Estados Unidos, copiei tudo, infelizmente até o que não devia. Nunca tinha fumado nem charuto, nem cigarro, nada. Mas admirava tanto um professor de anatomia patológica, um grande historiador, que copiei até o jeito de fumar do camarada. Trago isso comigo até hoje. Então, para aprender, é olhar e ver, ouvir e saber ouvir. Isso é importante.

RAIO X
Humberto Torloni é médico pela Escola Paulista de Medicina, onde também fez residência. Completou seu treinamento em Anatomia Patológica, na Universidade de Washington. Atuou na OMS e na Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS). Foi Diretor da Divisão Nacional do Câncer, do Ministério da Saúde, e Coordenador de Programas do Instituto Ludwig de Pesquisas sobre o Câncer. Atualmente é Diretor do Centro de Pesquisas do A. C. Camargo Cancer Center.
 
 

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