19042024Sex
AtualizadoQui, 18 Abr 2024 6pm

PUBLICIDADE
Daichii Sankyo

 

O papel do prescritor e o acesso ao tratamento do câncer

BARRIOS_NET_OK.jpgO oncologista Carlos Barrios (foto), diretor do Instituto do Câncer Mãe de Deus e do Latin American Cooperative Oncology Group (LACOG) discute desigualdades no acesso, fala do papel do prescritor e do ambiente de pesquisa em câncer na América Latina.

Valéria Hartt

Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.
 
Onconews: Equidade e universalidade são questões sempre em pauta na saúde, assim como o gargalo do acesso, que aumenta na oncologia. Nesse contexto, qual o papel do prescritor?
Carlos Barrios: É uma pergunta muito difícil. São muitas as situações que colocam o médico diante de questões complexas e temos que lidar com elas a partir de princípios absolutamente básicos, fundamentais. Qual o princípio básico do médico diante daquele paciente que está ali na sua frente? Como médico, você tem que atender a necessidade daquele paciente – e talvez não haja nada mais importante do que isso nesse momento. O papel é indicar o melhor tratamento possível e disponível para aquela situação. Nós temos que aprender e aceitar que nossa obrigação é recomendar o melhor para o paciente. Mas acontece que o paciente e sua família podem não ter condições de pagar um tratamento disponível no mercado, pode ser que seja um paciente do sistema público, que não vai oferecer esse tipo de tratamento, pode ser que o plano não cubra. Na minha opinião, todas essas questões são secundárias diante do compromisso do médico com o seu paciente. O que estamos observando atualmente é que o preço dos medicamentos e o problema do acesso têm levado o prescritor a colocar nessa equação complexa a decisão de recomendar ou não o melhor tratamento. Se a prescrição envolve um medicamento muito caro, podemos inviabilizar a lógica do sistema de saúde. Algumas cooperativas de determinados planos de saúde não têm condições de assumir os custos desses novos medicamentos. Isso nem estava previsto quando foi contratada a sinistralidade. E agora? Do ponto de vista prático, esse é um cenário que a gente tem que reconhecer. Cada vez mais os médicos colocam esse problema do acesso no momento da prescrição. Eu entendo que isso é extremamente difícil, não tem uma solução única e generalizada, vai depender do contexto de cada médico, de cada paciente.
 
E os biossimilares, que começam a chegar à oncologia, podem ampliar a perspectiva de acesso?
A resposta mais intuitiva é sim, mas isso ainda é uma incerteza. A incorporação dos biossimilares é positiva, desde que bem regulamentados e com a adequada qualidade, mas vem com a perspectiva de reduzir os preços em aproximadamente 30% segundo projeções de mercado. Quando você vê o preço dessas medicações e coloca isso no contexto da realidade brasileira, latino-americana ou de outro país em desenvolvimento de qualquer outro lugar do mundo, na minha opinião diminuir 30% do preço não vai ter nenhum impacto no acesso. Do ponto de vista prático, a introdução pura e simples dos biossimilares não acredito que vá resolver o problema do acesso. Pode até aliviar aqui e ali, mas de modo mais amplo acho que não vai resolver. Por outro lado, existem evidências do que aconteceu com medicamentos para doenças reumáticas na Noruega, onde os biossimilares foram negociados a 20% do custo do produto de referência, por um acordo entre o governo e as companhias fabricantes. Aí sim o desconto foi de 80% e permitiu o acesso para toda a população, mas isso implica um processo agressivo de negociação que tem que ser considerado como alternativa.
 
A chegada dos biossimilares na oncologia aumenta o desafio da farmacovigilância? Os médicos estão preparados?
Existe uma proporção dos oncologistas que desenvolve atividade de pesquisa clínica e, portanto, são médicos acostumados a reportar eventos adversos, que estão atentos a esse tipo de situação. Nós temos que criar sim uma cultura de farmacovigilância na prática clínica para valorizar relatos que podem decorrer da utilização de medicamentos. A farmacovigilância é absolutamente indispensável e precisa ser mais rotina do que é atualmente, precisa fazer parte da cultura médica.
 
E por falar em cultura médica, obstinação terapêutica versus cuidados paliativos, são mesmo perspectivas antagônicas?
Esse é um assunto extremamente interessante. Gostaria de começar com alguns conceitos mais filosóficos. Eu sou dramaticamente contra a denominação de cuidados paliativos quando essa expressão vem associada à ideia de um paciente fora de alcance terapêutico. O cuidado paliativo precisa começar no primeiro dia em que o paciente chega a uma instituição para o tratamento do câncer. Cuidado paliativo se faz o tempo todo, durante todo o tratamento, desde o manejo da náusea e vômito induzidos por quimioterapia ao controle da dor, da diarréia. O cuidado paliativo tem que ser referenciado como um cuidado integrado, continuado, que não tem um momento específico para acontecer. Do ponto de vista prático, se eu estabeleço esse princípio eu não vou separar esse paciente em momento algum, seja para receber uma quimioterapia desnecessária ou outro tratamento que não tem indicação, o que se enquadraria na obstinação terapêutica, assim como não vou abandonar e dizer ‘olha, agora você está em cuidados paliativos’. Eu acho que isso é um cuidado integral, sob a responsabilidade do mesmo médico. Sou completamente contrário à ideia de encaminhar o paciente para uma unidade de cuidados paliativos, como acontece em várias instituições, como se o oncologista abandonasse seu paciente a partir daquele momento. Fui criado e formado dentro do conceito de medicina interna e aprendi que meu compromisso com o paciente vai até o final. Eu não largo o paciente quando ele perde a batalha contra a doença e volto a dizer que integrar cuidados é parte do tratamento oncológico, desde o início. Sobre a obstinação terapêutica, entendo que é um nome bonito para uma prática muito ruim, que é a má indicação de um tratamento, um tratamento que não vai mais ajudar naquele momento e, portanto, é condenável.
 
O LACOG lançou no ano passado o projeto CURA. É um modelo inédito no país de promoção da pesquisa em câncer?
A pesquisa é obviamente fundamental. Sem pesquisa não existe inovação. Sem encontrar as nossas respostas, não vamos avançar. Então, a pesquisa é uma atividade crítica. O LACOG é uma iniciativa nessa direção que congrega centros de pesquisa e investigadores da América Latina. É um desafio muito grande, não apenas por ser inovador, mas pelas próprias condicionantes da nossa cultura e das necessidades regionais. Temos levado isso adiante com o empenho de muitos investigadores e temos buscado caminhos para uma questão central, que é o financiamento à pesquisa. Hoje, todo o aparato de pesquisa é financiado de alguma forma pela indústria farmacêutica. Queremos mudar esse cenário, mesmo que timidamente, e buscar recursos de outras fontes para a pesquisa em câncer. Quando toda a América Latina vive dificuldades econômicas, pode-se imaginar o tamanho desse desafio. No entanto, você olha lá fora a cultura da doação, a cultura da participação, você vê a pesquisa atraindo a credibilidade social, porque as pessoas acreditam que é possível compartilhar um projeto importante. Então, o projeto Cura nasceu com dois objetivos fundamentais. Primeiro, estimular aqui a cultura de participação, buscando essa fonte de recursos que existe, mas que não está acostumada a doar. O segundo grande objetivo é apoiar a pesquisa realizada no LACOG para tentar responder às nossas próprias perguntas e, consequentemente, conhecer melhor o panorama epidemiológico do câncer no Brasil e em toda a América Latina. Qual é a realidade do câncer de mama no Brasil? E no câncer de pulmão ou de próstata? Será que a gente não pode – e deve – gerar informações objetivas para conhecer melhor a epidemiologia dos tumores na nossa própria realidade? O LACOG quer buscar essas respostas. Ainda é cedo para fazer um balanço do CURA, mas certamente é o único projeto dessa natureza na área de pesquisa em câncer.
 
Que estudos estão em andamento?
Temos vários projetos epidemiológicos em câncer de mama, em pulmão e em câncer de próstata, com participação de diversas instituições do Brasil e de outros países. Em câncer de mama, por exemplo, nós estamos fazendo um estudo prospectivo de cinco anos para identificar as características clínicas e moleculares das pacientes em toda a América Latina. Em câncer de pulmão, nós estamos desenvolvendo um estudo que vai mapear as mutações mais presentes na região. É fundamental identificar não somente mutações no EGFR, mas também identificar rearranjos em ALK na nossa população. Essa é uma questão muito importante no nosso contexto, porque o câncer de pulmão é o que mais mata e até hoje não temos um agente como o crizotinibe, que foi liberado nos Estados Unidos cinco anos atrás. Voltamos à questão inicial do acesso, porque temos evidências robustas de que esse medicamento prolonga significativamente a vida do paciente, com qualidade. Sem acesso ao crizotinibe, estimamos que mais de mil vidas foram perdidas nesse período. Então, reconhecer que esse número existe e identificar essas pessoas é absolutamente crítico. Muitas discussões nascem da nossa capacidade de escancarar o problema, o que pressupõe ter dados capazes de retratar a nossa realidade. A mesma preocupação com a caracterização molecular está presente em um grande estudo em câncer de próstata. É um mega estudo, que deve inscrever cerca de 500 pacientes no Brasil.
 
Em editorial recente o Lancet Oncology defendeu mais pesquisa básica e estudos clínicos sobre o uso terapêutico da cannabis e dos canabinóides na oncologia. Qual a sua opinião?
Nós não temos no LACOG nenhuma linha de pesquisa com a maconha, mas eu não acho que esse seja um assunto controverso.  Do ponto de vista prático, isso se resume a demonstrar eficácia e segurança, como qualquer outra substância química que pode ter benefício medicinal.  Existe toda a magia de usar a maconha para isso ou aquilo, mas precisamos desmistificar. Os estudos clínicos cumprem esse papel, de demonstrar se existe benefício clínico e uma indicação adequada. Não podemos esquecer que a cocaína e o ópio são origem de medicações que hoje são amplamente aceitas e usadas. Os centros brasileiros estão absolutamente qualificados nesse momento para realizar pesquisa clínica e podemos crescer muito mais. Espero que essa nova proposta de regulação que está em trâmite nos ajude a desenvolver pesquisa. Isso pode estimular a criação de novos centros de pesquisa, incentivar a participação de pacientes e trazer recursos para o país.

Perfil: Carlos Henrique Escosteguy Barrios é oncologista clínico, professor do departamento de Medicina Interna da Faculdade de Medicina da PUCRS, diretor do Instituto do Câncer Mãe de Deus e do Latin American Cooperative Oncology Group (LACOG). 

 


Publicidade
ABBVIE
Publicidade
ASTRAZENECA
Publicidade
SANOFI
Publicidade
ASTELLAS
Publicidade
NOVARTIS
banner_assine_300x75.jpg
Publicidade
300x250 ad onconews200519