Conitec nega IMRT em câncer de cabeça e pescoço

Ferrigno_3_ON9_NET_OK.jpgA CONITEC negou a incorporação de IMRT para pacientes com câncer de cabeça e pescoço usuários do SUS, em um relatório que causou indignação e decepção.  Leia artigo de Robson Ferrigno (foto), ex-presidente da Sociedade Brasileira de Radioterapia, para quem a negativa representa um retrocesso.

Por Robson Ferrigno, Ex-Presidente da Sociedade Brasileira de Radioterapia 

Introdução

A radioterapia com técnica IMRT foi um dos maiores avanços tecnológicos da radioterapia nas últimas décadas. Ela permite que o depósito de radiação numa determinada área do corpo seja adequadamente concentrada, poupando ao mesmo tempo, os tecidos normais adjacentes. Com isso, é possível aumentar o controle local de um tumor e evitar complicações e sequelas da radioterapia.

No câncer de cabeça e pescoço, a técnica de IMRT permite que as glândulas salivares e outras estruturas normais, tais como, olhos, nervos, medula espinhal, articulação têmporo-mandibular e dentes, sejam poupadas de receber doses de radiação com potencial de complicações.

A literatura, através de estudos bem desenhados e comparativos, já comprovou que os pacientes com câncer de cabeça e pescoço, tratados com radioterapia através de técnica IMRT, possui chances maiores de ter a saliva preservada do que os tratados com técnicas menos adequadas, como a convencional e a conformada.

Manter a saliva de um paciente é de fundamental importância uma vez que ela é responsável pela primeira fase da digestão dos alimentos quando esses ainda estão sendo mastigados, ajuda a manter o paladar, protege os dentes de agentes microbianos e mantém a lubrificação da boca durante o dia e o sono. Perder a saliva representa um impacto negativo muito grande na qualidade de vida dos pacientes. Eles são frequentemente acometidos por infecções bucais, podem perder os dentes pela falta de proteção, inibem a digestão dos alimentos podendo provocar quadros de desnutrição e provocam sensação muito desagradável de boca seca, com a língua grudando no céu da boca e, como consequência, dores locais. 

O trabalho da Sociedade Brasileira de Radioterapia (SBRT)

Durante a minha gestão como Presidente da SBRT (2011 – 2014), criamos as Diretrizes de Utilização a respeito de procedimentos que não estão contemplados no rol da Agência Nacional de Saúde (ANS), entre eles, a radioterapia com técnica de IMRT. Graças à Diretriz sobre radioterapia com técnica de IMRT para pacientes com câncer de cabeça e pescoço, um documento escrito com base em evidências clínicas publicadas, a ANS incorporou no rol de procedimentos a radioterapia com IMRT para câncer de cabeça e pescoço a partir de Janeiro de 2014.

A partir de então, os planos de saúde foram obrigados a dar essa cobertura aos seus usuários. Com essa medida da ANS, tanto os pacientes, como os planos de saúde, saíram ganhando. Os pacientes pela diminuição das sequelas da radioterapia e pelo direito adquirido de ter a saliva preservada e os planos de saúde pela diminuição de custos de longo prazo.

Os custos de longo prazo são diminuídos porque os pacientes tratados com IMRT utilizam menos os recursos de saúde para tratamento das complicações causadas pela falta de saliva, tais como, tratamentos dentários, cirurgias para correção de trismo e para necrose de mandíbula, reposição nutricional e outros procedimentos. Ou seja, o tratamento com técnica de IMRT para câncer de cabeça e pescoço é custo efetivo e há trabalhos da literatura comprovando isso.

Durante o ano de 2014 elaboramos um documento e preenchemos o questionário da CONITEC para incorporação da IMRT para pacientes do SUS com câncer de cabeça e pescoço uma vez que essa enfermidade é mais frequente nesse grupo de pacientes que representa ¾ da população geral do país. Dentre os documentos enviados, estavam cinco estudos prospectivos e randomizados e uma metanálise realizada por autores brasileiros que comprovam os benefícios da IMRT para esses pacientes. Além desses artigos científicos com alto nível de evidência, a SBRT contratou uma empresa para realizar um estudo de custo efetividade para incorporação da IMRT para pacientes com câncer de cabeça e pescoço para a população brasileira no âmbito do SUS. Esse estudo mostrou claramente que a IMRT é custo efetiva, corroborando com outros estudos já publicados pela literatura. 

O relatório da CONITEC

Após avaliação inicial, a CONITEC publicou em seu site um relatório sobre a incorporação de IMRT para câncer de cabeça e pescoço para os pacientes do SUS baseado em sua avaliação e o colocou para consulta pública.

O relatório da CONITEC causou decepção para os médicos rádio oncologistas, oncologistas clínicos e cirurgiões de cabeça e pescoço que lidam no dia a dia com pacientes com câncer de cabeça e pescoço e sabem das dificuldades e sofrimentos causados pela doença e pela radioterapia com técnicas mais antigas e desatualizadas do que a IMRT.

O relatório possui várias inconsistências e inverdades. Os avaliadores subestimam as consequências da radioterapia sem IMRT e não dão a merecida importância para a xerostomia (perda de saliva) que pode ser evitada com a IMRT. É como se o usuário do SUS não tivesse esse direito porque pode gerar custo para o sistema de saúde e perder a saliva não tem a menor importância para os pacientes que não possuem recurso financeiro para ter um plano de saúde.  Se perder a saliva não tem a menor importância, fica a indagação porque então o Ex-Presidente da república, Luiz Inácio Lula da Silva, foi submetido ao tratamento de radioterapia com técnica IMRT?

Há no relatório a menção de que a técnica de IMRT pode causar segundo tumor primário. Não há qualquer relato na literatura com nível de evidência aceitável que pacientes com câncer de cabeça e pescoço tratados com radioterapia possuem chance de desenvolver segundo tumor primário devido à técnica de radioterapia com IMRT.

O relatório da CONITEC classifica os cinco estudos prospectivos e randomizados enviados pela SBRT como de evidência fraca. Os estudos em questão possuem nível de evidência 1 e grau de recomendação A. Por outro lado, de forma contraditória, os autores do relatório se baseiam em um estudo teórico e retrospectivo, com fraco nível de evidência, para afirmar com segurança que a técnica de IMRT aumenta o risco de tumores rádio induzidos.

Outra afirmação com pouca consistência é que a sala de blindagem deveria ser reforçada em 14% e isso aumentaria o custo de implantação da IMRT. Essa afirmação foi baseada em apenas um estudo brasileiro que calculou o efeito do feixe de IMRT. De fato sai mais radiação dos aparelhos, mas as blindagens são feitas com margens e não há qualquer Serviço no mundo que nos últimos 15 anos, desde que a IMRT começou a ser implantada globalmente, que tenha aumentado as espessuras da parede para evitar saída de radiação da sala.

Há no relatório que a duração de uma aplicação com IMRT dura em torno de 30 minutos. Essa é uma informação inverídica. Na prática, há técnicas de IMRT modernas, como os chamados arcos volumétricos, que fazem a liberação da dose ser em torno de dois minutos. Contanto com tempo gasto para posicionamento, a aplicação pode ser realizada em torno de 10 minutos. Mesmo com IMRT sem recurso de arcos volumétricos, o tempo médio de aplicação é de 15 minutos mesmo com a verificação de posicionamento do paciente com recurso de imagem.

O relatório descreve um estudo de custo efetividade pela CONITEC que vai contra os estudos publicados na literatura e no estudo realizado pela empresa contratada pela SBRT.

Os resultados dos estudos de custo efetividade são obtidos de acordo com os dados que alimentam o cálculo. No relatório da CONITEC, vários dados colocados são inconsistentes.

A análise financeira e de custo pela CONITEC não leva em consideração o custo com o tratamento da toxicidade relativa à radioterapia sem IMRT (convencional ou conformada) nem o custo com o tratamento das recidivas, tais como cirurgia, quimioterapia e cuidados paliativos.  

Há a afirmação que as máquinas são doadas pelos SUS. Isso só ocorre em algumas Instituições públicas e em poucas filantrópicas. Várias Instituições filantrópicas, inclusive aquela que sou responsável técnico, realizam radioterapia para pacientes do SUS com máquinas compradas com recursos próprios e, além disso, realizam radioterapia com técnica de IMRT para pacientes com câncer de cabeça e pescoço mesmo sem cobertura pelo SUS para evitar que os pacientes tenham consequências desastrosas com outras técnicas. Absorvemos o custo da realização da radioterapia com IMRT porque fazer outra técnica mais antiga para vários pacientes com câncer de cabeça e pescoço é atualmente má prática de medicina.

Outra afirmação distorcida é com relação à possibilidade de perda de eficácia causada pela heterogeneidade da dose no segmento irradiado. O texto faz referência ao estudo Passport que mostra haver maior recorrência local com IMRT, porém, essa diferença não é estatisticamente significativa. Não há qualquer dúvida sobre a eficácia da IMRT. A heterogeneidade de dose é inerente à própria técnica de tratamento. Isso não está relacionado com perda de controle e sobrevida conforme foram apontados em todos os ensaios clínicos randomizados sobre o tema. A recorrência não foi maior em nenhum dos estudos. O dado é claro, não há diferença estatisticamente significante em relação a esse desfecho nos estudos Passport e de Gupta e colaboradores. O relatório da CONITEC omitiu o fato que no estudo de Peng e colaboradores observou-se ganho estatisticamente significante no controle local e na sobrevida global com o emprego da IMRT em relação às outras técnicas.

O relatório da CONITEC não abordou a questão da qualidade de vida. No documento enviado pela SBRT, foram incluídos dois estudos com alto nível de evidência que mostraram melhor qualidade de vida entre os pacientes com câncer de cabeça e pescoço tratados com IMRT em relação às outras técnicas. 

Conclusões

O relatório da CONITEC não recomenda a incorporação da radioterapia com técnica de IMRT para tratamento dos pacientes com câncer de cabeça de pescoço e se baseia em dados distorcidos e afirmações inverídicas. Isso representa mais uma derrota dos pacientes do SUS em termos de acesso aos tratamentos mais efetivos e atualmente disponíveis para o câncer.

Não há a menor dúvida que a criação do SUS e a filosofia de acesso universal à saúde pelo Brasil foram um dos maiores programas de inclusão social do mundo. No entanto, faltam recursos financeiros, aplicação adequada e honesta desses recursos, vontade política e prioridade para o cidadão brasileiro que necessita de atendimento médico.

Negar um recurso tecnológico como a radioterapia com técnica de IMRT para pacientes com câncer de cabeça e pescoço para os usuários do SUS representa um atraso e vai contra a filosofia de acesso universal proposto pela Constituição de 1988.