Debates no manejo de tumores neuroendócrinos

Renata_Dalpino.jpgOs tumores neuroendócrinos (TNEs) são tema do artigo da oncologista Renata D’Alpino Peixoto (foto) e do cirurgião Marcos Belotto, do Centro Oncológico Antônio Ermírio de Moraes. Os tumores neuroendócrinos (TNEs) compreendem uma grande família de neoplasias epiteliais heterogêneas com diferenciação predominantemente neuroendócrina, e seu tratamento ainda é motivo de controvérsia.

Renata_Dalpino.jpgOs tumores neuroendócrinos (TNEs) são tema do artigo da oncologista Renata D’Alpino Peixoto (foto) e do cirurgião Marcos Belotto, do Centro Oncológico Antônio Ermírio de Moraes. Os tumores neuroendócrinos (TNEs) compreendem uma grande família de neoplasias epiteliais heterogêneas com diferenciação predominantemente neuroendócrina, e seu tratamento ainda é motivo de controvérsia.

*Renata D’Alpino Peixoto, Marcos Belotto
 
Palavras-chave:Tumores neuroendócrinos; cirurgia; análogos de somatostatina; terapia alvo-molecular; quimioterapia.
 
Resumo (abstract):Os tumores neuroendócrinos (TNEs) compreendem uma grande família de neoplasias epiteliais heterogêneas cujo tratamento depende de uma série de fatores e ainda é motivo de controvérsia. Sempre que a ressecção R0 é possível, o tratamento envolve cirurgia, mesmo na vigência de doença metastática. Algumas vezes, técnicas ablativas, tais como ablação por radiofrequência, crioablação ou radiocirurgia, podem ser aliadas à cirurgia ou usadas isoladamente no intuito de eliminar doença macroscópica visível. Para pacientes sintomáticos com doença predominantemente hepática e não candidatos à ressecção, as terapias transarteriais, tais como embolização arterial hepática, quimioembolização ou radioembolização constituem opções válidas para paliação de sintomas. Quanto ao tratamento sistêmico, hoje sabe-se que os análogos de somatostatina constituem opções para retardar a progressão da doença, embora o melhor momento em que devam ser iniciados permaneça desconhecido dado a costumeira indolência do curso da doença. Mais recentemente, terapias alvo-molecular têm mostrado eficácia especialmente em TNEs de sítio pancreático, mas não costumam oferecer taxas de resposta. Nestes casos em que a resposta é necessária, preconiza-se o emprego de quimioterapia citotóxica. O melhor regime e a melhor sequência ainda não estão bem estabelecidos.
 
Texto:
 
Os tumores neuroendócrinos (TNEs) compreendem uma grande família de neoplasias epiteliais heterogêneas com diferenciação predominantemente neuroendócrina. Originam-se da linhagem neuroectodérmica ou de células pluripotentes, sendo caracterizados pela presença de grânulos neurossecretores identificados por meio de microscopia eletrônica ou por imuno-histoquímica para cromogranina, sinaptofisina, enolase neuroespecífica ou PGP 9.5. São neoplasias relativamente raras, com incidência anual nos Estados Unidos de 3,6/100.000 habitantes1, porém estima-se que o número de casos esteja em ascensão2.
 
Quanto ao local de origem primária destes tumores, mais de 2/3 dos casos são oriundos do trato gastrointestinal. Nesta revisão, focaremos exclusivamente nos TNEs gastroenteropancreáticos (GEP).
 
Os TNEs englobam desde neoplasias bem diferenciadas com crescimento lento e baixo potencial de metástases, como os tumores carcinoides, até neoplasias pouco diferenciadas com crescimento rápido e alto potencial metastático, como os tumores de pequenas células de pulmão ou de outros órgãos.
 
O prognóstico depende não apenas do grau de diferenciação, mas também do sítio de origem, tornando os tumores neuroendócrinos bastante distintos entre si. De maneira semelhante, a própria nomenclatura e classificação histológica dos TNEs vem sofrendo alterações ao longo do tempo. Mais recentemente em 2010, a Organização Mundial da Saúde (OMS) separou os tumores bem diferenciados em baixo grau (G1) e grau intermediário (G2)3.
 
Já os TNEs pobremente diferenciados foram agrupados como tumores de alto grau (G3) e são chamados de carcinomas neuroendócrinos, os quais também não serão abordados nesta revisão. A classificação da OMS 2010 pode ser encontrada na Tabela 1. 

Tabela 1 – Nomenclatura e classificação dos TNEs GEP
Diferenciação Grau Contagem mitótica* Ki67 (%) OMS 2010
Bem diferenciado 1 < 2 ≤ 2 TNE grau 1
Bem diferenciado 2 2-20 3-20 TNE grau 2
Pobremente diferenciado 3 > 20 > 20 Carcinoma neuroendócrino, grau 3, pequenas células
Pobremente diferenciado 3 > 20 > 20 Carcinoma neuroendócrino, grau 3, grandes células
 

Clinicamente os TNEs podem ser divididos em funcionais e não funcionais. Os TNEs funcionais apresentam manifestações clínicas relacionadas aos hormônios ou neurotransmissores ativos secretados, os quais podem ser não específicos (como histamina, hormônio antidiurético ou peptídeo relacionado ao paratormônio), ou relativamente específicos para certos tipos de neoplasia. Já os tumores carcinoides clássicos tendem a produzir serotonina, sendo sua manifestação clínica chamada de síndrome carcinoide.
 
Há muitos tópicos controversos no que tange o manejo dos TNEs GEP. Sempre que factível, o tratamento compreende a ressecção cirúrgica, cuja técnica varia de acordo com o tipo e a localização do TNE. Mesmo na vigência de doença metastática para fígado, quando as lesões podem ser ressecadas com intuito curativo (ressecção R0 na doença de baixo volume), o tratamento cirúrgico é uma válida opção, embora não constitua unanimidade.
Sabe-se que a taxa de recorrência é alta, mas tal fato não inviabiliza a estratégia cirúrgica, uma vez que longa sobrevida global (SG) pode ser alcançada. Estudos retrospectivos mostram taxas de SG em 5 e 10 anos de 75% e 50%, respectivamente4,5.
 
É possível que o viés de seleção possa justificar o encontro de SG tão altas visto que pacientes encaminhados para cirurgia tendem a ter melhor performance status, menor volume de doença e ausência de doença extra-hepática6.
 
Algumas vezes, técnicas ablativas, tais como ablação por radiofrequência, crioablação ou radiocirurgia, podem ser aliadas à cirurgia para lesões menores que 3 cm com objetivo de se atingir a eliminação completa da doença macroscópica5. Entretanto, quando a ressecção R0 não é possível, cirurgias de debulking não são, em geral, indicadas, a não ser em casos nos quais a retirada do maior número possível de lesões possa ajudar no controle das síndromes hormonais. Numa série com 170 pacientes submetidos à ressecção hepática, 96% dos pacientes obtiveram alívio dos sintomas hormonais com cirurgia de debulking7.
 
Outro tópico cirúrgico controverso diz respeito à ressecção do tumor primário em pacientes com doença metastática irressecável. Acredita-se que pacientes cujo tumor primário cause sintomas devam ser considerados para abordagem cirúrgica do mesmo, visto que tais pacientes costumam apresentar sobrevidas longas e a presença do tumor primário pode causar obstrução8.
 
É sabido que tumores carcinóides de intestine Delgado estão frequentemente associados à desmoplasia e fibrose, que pode resultar em obstrução intestinal intermitente e até, em alguns casos, em isquemia intestinal.
Para pacientes sintomáticos com doença predominantemente hepática e não candidatos à ressecção, as terapias transarteriais, tais como embolização arterial hepática, quimioembolização ou radioembolização constituem opções válidas para paliação de sintomas, embora o benefício em termos de SG permaneça desconhecido. Uma recente metanálise analisou 18 estudos com as três diferentes técnicas e não demonstrou diferenças entre elas, embora haja uma sugestão de que a radioembolização cause menos efeitos colaterais e requeira menor número de sessões9.
 
O tratamento sistêmico dos pacientes com TNE GEP também é, muitas vezes, motivo de intenso debate. Primeiramente, existem diferenças referentes à eficácia das terapêuticas dos TNE pancreáticos e não-pancreáticos (carcinoides). Quanto aos tumores carcinoides irressecáveis e causadores de síndrome carcinoide, preconiza-se o início sistêmico de análogos de somatostatina, algo que já é realizado há décadas10.
 
Tanto o octreotide quanto o lanreotide são altamente eficazes no controle dos sintomas carcinoides e as formulações de liberação prolongada (LAR) facilitaram o seu manejo11. Mais recentemente, dois importantes estudos de fase III (PROMID e CLARINET) mostraram também eficácia anti-tumoral dos análogos de somatostatina ao aumentar o tempo para progressão, mesmo em pacientes com tumores não funcionantes12, 13, valendo ressaltar que o estudo CLARINET incluiu aproximadamente 50% de pacientes com TNEs de sítio pancreático. No entanto, ainda persiste em intenso debate o melhor momento para se iniciar um análogo do somatostatina, especialmente pelo conhecimento de que muitas vezes o curso da doença é indolente. Desta maneira, a ENETS (European Neuroendocrine Tumor Society)14 e a NANETS (North American Neuroendocrine Society)15 recomendam um período de observação ao invés do início imediato de análogos de somatostatina para pacientes com tumores carcinoides bem diferenciados, irressecáveis, assintomáticos e de pequeno volume. Casos estes pacientes apresentem progressão da doença, inicia-se neste momento um análogo de somatostatina. Já para pacientes com alto volume de tumor, sugere-se iniciar imediatamente com um análogo de somatostatina.
 
Quanto a outras modalidades de tratamento sistêmico, tanto o everolimos quanto o sunitinibe mostraram benefício em prolongar a sobrevida livre de progressão (SLP) para pacientes com TNE pancreáticos16,17, embora com baixas taxas de resposta. Já a utilidade das terapias alvo-molecular em tumores carcinoides (TNEs gastrointestinais) ainda não está bem estabelecida. O estudo RADIANT-2 randomizou 429 pacientes com tumores carcinoides que apresentaram progressão de doença nos 12 meses anteriores para Octreotide LAR com ou sem everolimos. Embora a SLP tenha sido numericamente superior no grupo combinado (16,4 versus 11,3 meses), não foi encontrada diferença estatística entre os braços18 e o uso de everolimos neste grupo de pacientes permanece discutível.
 
A mesma dúvida quanto à eficácia de quimioterapia citotóxica existe em relação aos tumores carcinoides, que durante muito tempo foram considerados resistentes à quimioterapia sistêmica, diferentemente dos TNEs pancreáticos, cuja resposta à quimioterapia já é conhecida de longa data. A combinação de temozolamida e capecitabina, muito promissora em TNEs pancreáticos, tem apenas pouca evidência de atividade em tumores carcinoides19, sendo necessário um estudo prospectivo específico nessa população. Outras combinações incluindo uma fluoropirimidina, oxaliplatina ou bevacizumabe parecem também ter certa atividade, ainda que modesta. No entanto, o regime e a sequência ideais e o melhor momento para serem iniciados permanecem desconhecidos. Para pacientes com TNE pancreático, alto volume de doença e/ou doença rapidamente progressiva, sugere-se começar o tratamento com quimioterapia citotóxica ao invés de terapias alvo-molecular tendo em vista a maior taxa de resposta obtida com quimioterapia. Combinações de estreptozocina com 5-fluorouracil e/ou doxorrubicina apresentam taxa de resposta da ordem de 40%20, 21, enquanto a combinação de temozolamida e capecitabina chegou a atingir taxa de resposta de 70% em um estudo retrospectivo com apenas 30 pacientes22.
 
Um estudo prospectivo incluindo TNEs pancreáticos e não pancreáticos está em andamento avaliando a combinação de temozolamida e capecitabina e ajudará a responder melhor qual o papel desta combinação de drogas no tratamento dos TNEs23.
 
Além de regimes de quimioterapia e terapias alvo-molecular, hoje sabe-se que TNE com hipercaptação no octreoscan ou no PET-TC Gálio-68 (indicando a presença de receptores de somatostatina nos TNEs) podem ser alvos para moléculas radioativas acopladas a um análogo de somatostatina (111-In-octreotida, Y-90-octreotida ou 177-Lu-octreotato)24. O emprego deste tipo de terapia em portadores TNEs está associado a 24% de taxa de resposta, a qual costuma ser duradoura, constituindo mais uma opção para pacientes sintomáticos e que apresentam tumores captantes pelo octreoscan ou PET-TC Gálio-68 em locais onde tal terapia esteja disponível.
Em conclusão, os TNEs constituem um grupo bastante heterogêneo de neoplasias e cuja melhor abordagem de manejo cirúrgico e clínico ainda permanece sendo alvo de acirrada discussão. O fato de constituírem neoplasias relativamente raras torna imperiosa a participação de múltiplos centros internacionais em estudos randomizados para que a estratégia terapêutica ideal seja rapidamente estabelecida.
 
Autores*: Renata D’Alpino Peixoto é oncologista clínica do Centro Oncológico Antônio Ermírio de Moraes. Fellowship de 2 anos em Oncologia Gastro-intestinal no BC Cancer Agency, Vancouver, Canadá. Residência em Oncologia pelo Hospital Sírio Libanês. Especialista em Clínica Médica.
 
Marcos Belotto é cirurgião do Grupo de Pâncreas e Vias Biliares da Santa Casa de São Paulo. Cirurgião do Centro Oncológico Antônio Ermírio de Moraes. Cirurgião do Hospital Israelita Albert Einstein.
 
Referências bibliográficas
 
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